No período pré-64 os EUA fizeram o diabo no Brasil.
A cereja no bolo foi a Operação Brother Sam, que colocaria uma frota de navios
norte-americanos na costa brasileira com o objetivo de apoiar os golpistas
Um dos maiores brasilianistas da atualidade, o professor James N. Green
da Brown University (EUA), enviou hoje uma carta aberta ao Embaixador Michael
Fitzpatrick, representante dos EUA na Organização dos Estados Americanos (OEA),
contestando as declarações deste no sentido de que o processo de impeachment no
Brasil seria legítimo por estar conforme os procedimentos constitucionais e as
regras democráticas.
Green começa a carta afirmando: “Fiquei extremamente desapontado ao ler
que você afirmou que, inequivocamente, o processo de impeachment atualmente em
curso no Brasil é democrático e legítimo. Mesmo considerando os perigos
existentes na comparação histórica de eventos ocorridos em diferentes períodos,
digo que o governo dos EUA está correndo o risco de repetir o trágico erro
feito em Abril de 1964, quando o Presidente Lyndon B. Johnson reconheceu a
ditadura militar que havia tomado o poder e que terminou governando o país por
21 anos”.
Após examinar detidamente como o golpe de 1964 “respeitou” alguns
procedimentos formais e legais para manter sua aparência de legitimidade, James
Green analisa diversos aspectos do atual processo do impeachment que, guardadas
as devidas proporções, em muito se aproximam do golpe que deu início à ditadura
militar.
E conclui assim sua carta: “Em 1964, o governo dos EUA estava no lado
errado da história. Ele nunca pediu desculpas para o povo brasileiro por ter
apoiado uma ditadura militar. Agora, cinco décadas depois, eu receio que, mais
uma vez, ele esteja endossando um processo ilegítimo. Aqueles que não aprendem
com a história são levados a repeti-la”.
A íntegra da carta segue abaixo, traduzida em português, e
na sua versão original, em inglês.
Renan Quinalha é advogado, doutorando em
Relações Internacionais pela USP e Visiting Research Fellow na Brown
University, EUA.
O professor James N. Green e o
embaixador Michael Fitzpatrick
19 de maio de 2016.
Carta Aberta ao Embaixador Michael Fitzpatrick
Representante dos EUA na Organização dos Estados
Americanos (OEA)
Caro Embaixador Fitzpatrick,
Fiquei extremamente desapontado ao ler que você afirmou que,
inequivocamente, o processo de impeachment atualmente em curso no Brasil é
democrático e legítimo. Mesmo considerando os perigos existentes na comparação
histórica de eventos ocorridos em diferentes períodos, digo que o governo dos
EUA está correndo o risco de repetir o trágico erro feito em Abril de 1964,
quando o Presidente Lyndon B. Johnson reconheceu a ditadura militar que havia
tomado o poder e que terminou governando o país por 21 anos.
Você declarou o seguinte: “Há um claro respeito pelas instituições
democráticas e uma clara separação de poderes. No Brasil, é claramente a lei
que prevalece, emergindo com soluções pacíficas para as disputas”. Você também
afirmou: “Nós não acreditamos que isso seja um exemplo de um “golpe
brando” ou, para esse efeito, um golpe de qualquer tipo. O que aconteceu em
Brasil cumpriu rigorosamente o procedimento legal constitucional e respeitou
totalmente as regras democráticas”.
Esses são precisamente os argumentos que o Embaixador Lincoln Gordon
usou 52 anos atrás, quando ele insistiu que a administração Johnson
imediatamente endossou a tomada do poder pelos militares, que foi legitimada
pela aplicação formal da Constituição e pela votação majoritária do Congresso.
Tenho certeza de que você esteja familiarizado com a história recente do
Brasil. Mesmo assim, vale certamente a pena uma revisão, dada a situação atual.
Peço desculpas se minhas observações são extensas. Eu sou um historiador e,
honestamente, acredito que o entendimento do passado é importante para
compreender o presente. E, como o compositor brasileiro Tom Jobim uma vez
gracejou, “o Brasil não é para principiantes”.
Em 1960, Jânio Quadros, um candidato de centro-direita, foi eleito
presidente. João Goulart, um político de centro-esquerda, tornou-se
vice-presidente, porque se votava separadamente para presidente e
vice-presidente. Sete meses depois, Quadros repentinamente renunciou do cargo.
Setores militares tentaram, sem sucesso, impedir Goulart de assumir a
presidência.
A direita, infeliz com o fato de que Goulart assumiu o cargo, organizou
uma ampla coalização para retirá-lo do poder. Ela incluiu a Igreja Católica,
empresários, grande mídia e grandes setores das classes médias. Esses eventos
ocorreram em um contexto de uma crise econômica, inflação e movimentos de base
de trabalhadores, camponeses e marinheiros clamando por maior inclusão
econômica e social.
Como já foi largamente documentado e revelado pelos documentos liberados
do Departamento de Estados dos EUA, o Embaixador Lincoln Gordon e o seu adido
militar Vernon Walters ativamente apoiaram a conspiração para depor Goulart.
Eles usaram os argumentos da Guerra Fria, segundo os quais Goulart estava sendo
manipulado pelo Partido Comunista Brasileiro, que ele era corrupto e que ele
queria assumir um poder ilimitado. Eles garantiram aos generais brasileiros
que, caso eles forçassem a saída de Goulart do cargo, o governo norte-americano
daria apoio ao novo governo que assumisse. A administração de Johnson chegou a
organizar a Operação Brother Sam, que mandou porta-aviões, armas, suprimentos,
para apoiar as tropas rebeldes caso uma guerra civil eclodisse.
No dia 31 de março, tropas marcharam no Rio de Janeiro para depor
Goulart. No dia seguinte, o presidente voou do Rio de Janeiro para Brasília
para mobilizar apoio político contra essa tomada ilegal do poder. Ele queria
evitar o derramamento de sangue, então ele não convocou seus apoiadores a
resistir ao golpe de Estado.
Assim que o avião decolou, o Presidente do Senado e o Presidente da
Corte Suprema, argumentando que eles estavam seguindo os procedimentos
constitucionais, empossaram Ranieri Mazzilli, Presidente da Câmara dos
Deputados, como Presidente em exercício. De acordo com a Constituição, o
Congresso tinha trinta dias para escolher um novo presidente. Hoje, todo mundo,
exceto os que defendem a ditadura militar, chamam esses eventos de golpe de
Estado, o golpe de 1964.
Em vários telegramas com a Casa Branca, o Embaixador Gordon argumentou
que o que se passou no Brasil cumpria perfeitamente com os procedimentos legais
constitucionais e respeitava totalmente as regras democráticas. Ele trabalhou
duro para convencer o Presidente Johnson a reconhecer o novo governo, o que foi
feito no dia 2 de abril, legitimando o golpe e colocando o selo de aprovação do
governo dos EUA nessa mudança ilegal de poder que foi implementada de acordo
com “os procedimentos legais constitucionais”.
No dia 11 de abril, os 295 membros do Congresso elegeram o General
Castelo Branco como Presidente do Brasil. Isso completou a transição
“democrática” de um governo legalmente eleito para uma ditadura militar
ilegítima.
Imediatamente depois de reconhecer o governo de Mazzilli, no dia 3 de
abril, o Presidente Johnson chamou os líderes do Congresso para a Casa Branca
para convencê-los de que o governo dos EUA estava apoiando a democracia no
Brasil. O senador democrata Wayne Morse, de Oregon, deixou o encontro e
declarou para a imprensa: “os acontecimentos no Brasil não resultaram da
ação de uma junta militar ou de um golpe. Ao invés disso, a deposição da
presidência do Brasil resultou de um desenvolvimento no qual o Congresso do
Brasil, agindo sob a Constituição, foi a força condutora e foi reforçado por um
grupo militar que garantiu a preservação do sistema constitucional brasileiro”.
Em comentários para seus colegas senadores mais tarde naquele mesmo ano,
Morse reiterou suas conclusões:“Nesta noite, nenhum senador pode citar o Brasil
como um exemplo de ditadura militar, porque ele não é. O autogoverno por parte
do povo brasileiro continua prosseguindo. Se alguém pensa que não, deixe-o
olhar ao que está acontecendo no Brasil com o respeito ao intercâmbio de pontos
de vista no Parlamento, na imprensa e em muitas fontes e forças da opinião
pública”.
Um ano depois, em outubro de 1965, quando o governo militar aboliu as
eleições presidenciais, Morse chegou a uma conclusão diferente. Percebendo que
as armadilhas do regime democrático eram só para manter as aparências, ele
afirmou: “novidades da captura do poder ditatorial pela junta militar
brasileira assinala uma reversão para a liberdade na América Latina. O que é
ainda pior é a continuidade do apoio financeiro americano a esse regime (…) As
semânticas de Washington e da trama brasileira, buscando acalmar os receios
pelas instituições democráticas naquela grande nação, não vão enganar qualquer
um, mas aqueles que querem ser enganados”.
Muitos que lutaram contra o regime militar e muitos outros que lembram
ou que estudaram sobre o regime autoritário têm sustentado que a manobra
política em curso para expulsar o governo eleito democraticamente da Presidenta
Dilma Rousseff é um outro golpe de Estado.
Você afirmou, vigorosamente, que “há um claro respeito pelas
instituições democráticas e uma clara separação de poderes” no Brasil hoje. Mas
será mesmo isso? Estaria você, como o Senador Wayne Morse em 1964, talvez sendo
enganado pelas aparências de procedimentos democráticos e separação de poderes
no processo de impeachment porque não há tanques nas ruas e nem generais no comando
do governo?
Como pode ter havido procedimento democrático na Câmara dos Deputados
quando Eduardo Cunha, que controlava totalmente essa instituição, foi afastado
do seu cargo um semana após a votação de admissão do processo do impeachment?
Um pedido para seu afastamento dessa posição havia sido feito em dezembro do
ano passado por desvio de finalidade e abuso de poder, mas o membro da Suprema
Corte sentou sobre esse pedido até que Cunha tivesse garantido que a oposição
teria os dois terços necessários para aprovar o seguimento do processo do
impeachment da Presidenta Dilma. Quantos congressistas Cunha e seus aliados
compraram ou ganharam com suas promessas de um novo governo? Como um processo
conduzido por uma pessoa que é processada por lavagem de dinheiro e por
recebimento de suborno pode ser legitimado?
Como pode haver separação de poderes quando integrantes da Suprema Corte
fazem afirmações públicas sobre casos que estão sob sua alçada, revelando suas
opiniões políticas na mídia, pré-julgando casos e, com isso, influenciando o
debate público e os atores políticos? Além disso, a Suprema Corte tem sido
excessivamente arbitrária em decidir quais casos analisar, levando quase seis
meses para julgar o afastamento de Eduardo Cunha e proferindo uma decisão veloz
contra a indicação de Lula para um cargo no governo Dilma. Esses casos são
exemplos, dentre tantos outros, das maneiras perversas como o Judiciário se
enredou com a política, ao invés de permanecer separado dela.
Como você pode dizer que houve procedimentos democráticos quando agentes
da polícia e do sistema de justiça vazam seletivamente informações da Operação
Lava Jato para criar um clima hostil ao governo e aos seus aliados? Por que era
um desvio de finalidade a Presidenta Dilma nomear o ex-Presidente Lula como seu
ministro da Casa Civil sob alegação de que ele estaria supostamente
esquivando-se das investigações, quando o Presidente interino Michel Temer
indicou sete pessoas sob investigação para ministérios? Não estaria ele
abusando do seu poder em um esforço para proteger seus aliados?
Por que a Presidenta Rousseff está sendo acusada de violação à Lei de
Responsabilidade Fiscal pela prática de pedaladas, sendo que o Presidente
interino Michel Temer fez exatamente a mesma coisa enquanto substituía a
presidenta em viagens desta? E os antecessores, presidentes Lula e Cardoso, que
também praticaram atos semelhantes, para não falar de pelo menos 16
governadores, incluindo Aécio Neves, que também fizeram as pedaladas?
Você também falhou em assinalar no seu discurso outra deficiência na
situação política atual do Brasil, ou seja, a liberdade de imprensa (e das
mídias de massa em geral) apenas para os que são proprietários delas. Hoje, as
forças conservadoras que controlam os maiores jornais, revistas e canais de
televisão sistematicamente apresentam visões parciais dos acontecimentos apenas
para influenciar a opinião pública. É como se a Fox News pudesse controlar todos
os canais da grande mídia dos EUA. Felizmente, as mídias sociais estão servindo
como uma fonte alternativa de informação, mas elas não têm o mesmo peso da
mídia hegemônica.
A primeira semana do novo governo revelou uma agenda radicalmente nova,
mas verdadeiramente antiga, para o Brasil, que pretende retroceder todos os
avanços sociais que tiveram lugar nos últimos 30 anos desde o fim da ditadura.
Aqueles que se sentiram ultrajados pelo fato de Michel Temer não ter indicado
nenhum mulher ou pessoa negra para posições ministeriais não estão clamando por
demagogia. Esse ato não é trapalhada de relações públicas.
Isso simboliza a intenção desse governo. Temer culpou seus aliados por
não indicarem nomes de mulheres e negros, em um esforço para se eximir da
responsabilidade. Ao menos seus comentários falam alto sobre a natureza dos
seus aliados que o levaram ao poder e sobre a natureza desse novo governo
“democrático”. Na primeira semana de sua gestão, ele já anunciou que vai
reduzir direitos sociais, com cortes no sistema de seguridade social, educação
e moradia, que afetam largamente os setores mais pobres da sociedade
brasileira.
Em 1964, o governo dos EUA estava no lado errado da história. Ele nunca
pediu desculpas para o povo brasileiro por ter apoiado uma ditadura militar.
Agora, cinco décadas depois, eu receio que, mais uma vez, ele esteja endossando
um processo ilegítimo. Aqueles que não aprendem com a história são levados a
repeti-la.
Respeitosamente,
James N. Green
Carlos Manuel de Céspedes Chair in Latin American History, Brown University
Director of the Brown-Brazil Initiative
Carlos Manuel de Céspedes Chair in Latin American History, Brown University
Director of the Brown-Brazil Initiative
Texto Renan Quinalha:
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