Moço pobre e
ambicioso, um certo Federico saiu de sua cidade natal e foi tentar a vida na
capital do país. Queria dedicar-se às artes, talvez ao cinema, mas começou pelo
Jornalismo.
Essa é a história de
um Federico que se chamava Fellini e viria a se tornar um dos gênios
incontestes do cinema mundial.
Ele deixou sua Rimini
natal, foi a Florença, depois a Roma e, como desenhava, pediu emprego na
revista satírica Marc'Aurelio.
Essa é a história
de Que Estranho Chamar-se Federico - Scola Conta Fellini,
que estreia no circuito comercial depois de passar pelo Festival de Veneza e
pela Mostra de Cinema de São Paulo.
Na verdade, o filme é celebração de
uma grande amizade entre esses dois cineastas absolutamente fora do normal.
Fellini é o gênio, e Ettore Scola, um dos últimos grandes do cinema italiano
ainda em atividade.
O filme estreia 20 anos depois da
morte de Fellini, ocorrida em 1993.
A amizade dos dois está contada no filme desde quando se conheceram. O então garoto Fellini chegara à revista com seus desenhos debaixo do braço e conseguiu um lugar.
É caçula numa turma de
cobras criadas, uma equipe que, em pleno fascismo, enfrentava a censura de
Mussolini.
Como se sabe, nada
mais ingrato, mas também nada mais recompensador que fazer graça sob a ameaça
de um regime totalitário.
Os riscos são grandes,
mas a simples obrigação de driblar a censura pode ser um fator de estímulo
muito poderoso.
Scola, aos 16 anos, chega à Marc’Aurelio em 1947, já no após-guerra. Fellini, 11 anos mais velho, então já é um veterano e está envolvido com o cinema.
Scola, aos 16 anos, chega à Marc’Aurelio em 1947, já no após-guerra. Fellini, 11 anos mais velho, então já é um veterano e está envolvido com o cinema.
Acolhe o recém-chegado como a um irmão mais
moço e passam a frequentar a noite romana.
O garoto Ettore
acompanha Federico em seus longos passeios romanos, falando com bêbados,
mendigos, prostitutas, saltimbancos, artistas de rua, ricos excêntricos,
notívagos em geral, tipos curiosos e sem eira nem beira - enfim, pessoas de
toda a espécie que, no futuro, entrariam como personagens nos filmes de ambos.
Curiosamente, um filme tão italiano
como Que Estranho Chamar-se Federico começa com uma citação em
espanhol, e da qual deriva seu título: “Entre los juncos y la baja tarde, qué
raro que me llame Federico”.
Os versos, claro, são de outro
Federico, de García Lorca, o poeta formidável, fuzilado pelos fascistas durante
a Guerra Civil na Espanha.
Scola toma esses versos como sugestão
de um título original, mas também como alusão ao fascismo, sob forma italiana,
enfrentado pelo próprio Fellini.
Essas experiências de juventude sob o
Duce aparecerão em filmes posteriores, em especial neste que tem na própria
ideia da memória o seu tema maior - Amarcord, que, no dialeto de Rimini,
significa “Eu me Recordo".
Que Estranho Chamar-se Federico trabalha numa linha narrativa dupla. Usa atores para reconstituir passagens da vida tanto de Fellini como de Ettore Scola (ambos são interpretados por netos de Scola).
Que Estranho Chamar-se Federico trabalha numa linha narrativa dupla. Usa atores para reconstituir passagens da vida tanto de Fellini como de Ettore Scola (ambos são interpretados por netos de Scola).
Mescla essas
encenações ao material de arquivo, com imagens do “verdadeiro” Fellini em
diversas fases de sua vida.
Vasto arquivo disponível,
diga-se, já que Fellini, depois de um começo um tanto anônimo como diretor,
logo conheceria a fama.
Frequentou - e venceu
- os grandes festivais de cinema do mundo, recebeu vários Oscars entre outros
prêmios, foi popular, encantou a crítica e teve toda a mídia disponível em seu
tempo. Portanto, imagens suas não faltam.
Assim como não faltam imagens dos seus filmes, desta fabulosa filmografia que vai de 1950, a estreia com Mulheres e Luzes, em parceria com Alberto Lattuada, até Vozes da Lua, de 1990, seu último trabalho e testamento.
Assim como não faltam imagens dos seus filmes, desta fabulosa filmografia que vai de 1950, a estreia com Mulheres e Luzes, em parceria com Alberto Lattuada, até Vozes da Lua, de 1990, seu último trabalho e testamento.
Entre eles,
obras-primas absolutas, como A Doce Vida e Oito e Meio, além de A Estrada da Vida, Noites
de Cabíria, Os Palhaços, Roma, Amarcord, etc. Uma
filmografia de sonho, que muitas vezes usa o próprio sonho como fonte de
inspiração e material de trabalho.
Entre as imagens selecionadas por Scola há algumas bastante conhecidas e outras no mínimo raras, senão inéditas.
Entre as imagens selecionadas por Scola há algumas bastante conhecidas e outras no mínimo raras, senão inéditas.
Por exemplo, as provas
para a escolha de um ator que interpretasse Giacomo Casanova, e que acabou ficando
com Donald Sutherland, não sem antes terem sido testados vários outros atores.
Essas provas de
bastidores são muito reveladoras da personalidade de Fellini, um humanista que
às vezes não deixava de se comportar como um bruto com seus atores.
Há o making of de
Satyricon, seu grande filme que adapta o relato romano de Petrônio, no qual uma
das atrizes lhe diz, queixosa:
"Você não tem o
direito de tratar uma atriz desse jeito”. Ao que Fellini "responde"
com um gesto de enfado tipicamente italiano.
Bem-humorado, irônico, satírico, ele não era sempre fácil de lidar. Seus atores, no mais das vezes, trabalhavam no escuro, sem sequer conhecer suas falas.
Bem-humorado, irônico, satírico, ele não era sempre fácil de lidar. Seus atores, no mais das vezes, trabalhavam no escuro, sem sequer conhecer suas falas.
Fellini mandava que
recitassem números durante as cenas. Mais tarde as falas seriam dubladas e
acrescentadas sobre o movimento dos lábios. Nada disso é escondido.
Scola não pretende
fazer uma hagiografia. Gostava de Fellini do jeito que ele era, sem qualquer
necessidade de esconder seus defeitos, que ele tinha às pencas, sem deixar de
ser genial por isso.
Talvez seja por isso mesmo que esse mix de ficção e documentário comova tanto as pessoas. Ele não é uma ode aos homens perfeitos.
Talvez seja por isso mesmo que esse mix de ficção e documentário comova tanto as pessoas. Ele não é uma ode aos homens perfeitos.
É retrato de um
cineasta que legou uma obra fundamental, mas, quando visto de perto, era
humano, falível, bondoso, irascível ou gozador, como qualquer um de nós pode
ser.
A amizade entre os
dois estava acima dessas turbulências e era tanta que Scola convenceu Fellini a
interpretar a si mesmo em seu filme Nós Que Nos Amávamos Tanto, de 1974.
Nele, Fellini aparece
rodando a cena que se tornou ícone do cinema da modernidade - o banho da divina
Anita Ekberg na Fontana de Trevi, sob o olhar fascinado de Marcello
Mastroianni. No final da filmagem, um fã dirige-se a Fellini: "Vi todos os
seus filmes, ... senhor Rossellini".
Fellini era autoirônico e, sendo muito famoso, achava graça quando o confundiam com outro. No caso, o grande Roberto Rossellini, pai do neorrealismo italiano e com quem Fellini, ainda iniciante, trabalhou como roteirista e até como ator.
Fellini era autoirônico e, sendo muito famoso, achava graça quando o confundiam com outro. No caso, o grande Roberto Rossellini, pai do neorrealismo italiano e com quem Fellini, ainda iniciante, trabalhou como roteirista e até como ator.
Em outro de seus
filmes, o falso documentário Os Palhaços (I Clown), Fellini faz uma bibliotecária chamá-lo de
"Signore Bellini".
Sendo a graça, a autogozação, o não levar-se a sério uma característica do amigo, Ettore Scola não poderia dar desfecho triste ao filme, mesmo que este retrate Fellini até a morte.
Sendo a graça, a autogozação, o não levar-se a sério uma característica do amigo, Ettore Scola não poderia dar desfecho triste ao filme, mesmo que este retrate Fellini até a morte.
A maneira como trata
do velório do amigo, realizado no estúdio de Cinecittà onde ele costuma filmar,
é uma verdadeira epifania. Mas esta terá de ser revelada a cada espectador em
particular.
Basta dizer que, graças a essas cenas finais, Que Estranho Chamar-se Federico produziu um rio de lágrimas em Veneza. Na seção de gala, chorou até o presidente da Itália, Giorgio Napolitano.
Basta dizer que, graças a essas cenas finais, Que Estranho Chamar-se Federico produziu um rio de lágrimas em Veneza. Na seção de gala, chorou até o presidente da Itália, Giorgio Napolitano.
À sua maneira seca,
Ettore Scola disse que não via razão para tanto: "Fellini era um homem
alegre, realizou tudo o que quis em sua vida; não há nenhum motivo para
lamentar quando evocamos uma vida assim completa".
Verdade. Mas também puro jogo de cena. Scola sabe muito bem que não se chora apenas de tristeza. Chora-se mais ainda de emoção.
Verdade. Mas também puro jogo de cena. Scola sabe muito bem que não se chora apenas de tristeza. Chora-se mais ainda de emoção.
Que estranho chamar-se Federico-Scola
conta Fellini
Luiz Zanin Oricchio – O Estado de São
Paulo
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