Ao abrir evento que comemora os dez anos de
existência da emissora Telesur, jornalista falou sobre comunicação e avanço da
esquerda na região.
O maior confronto enfrentado na América Latina
atualmente é “a batalha midiática”, desde pelo menos o ano de 2002, quando a
tentativa frustrada de derrubar Hugo Chávez na Venezuela deu início a um novo
tipo de golpe de Estado, o “golpe midiático”, transferindo aos meios de
comunicação privados o papel de partido político nas oposições aos governos da
“guinada à esquerda”.
A avaliação foi feita pelo jornalista e professor
Ignacio Ramonet, ex-editor do jornal Le Monde Diplomatique, na palestra de abertura do congresso “Comunicação
e Integração Latino-Americana”, realizado entre os dias 22 e 23 de julho em
Quito, capital do Equador.
Organizado pelo Ciespal (Centro Internacional de
Estudos Superiores da Comunicação para a América Latina), o evento comemora
nesta sexta-feira (24/07) os dez anos de fundação daTelesur, canal multinacional de televisão mantido por
diversos governos da região. Fundada por iniciativa de Chávez três anos após o
golpe fracassado, a emissora nasceu com o papel de promover uma alternativa na
cobertura das notícias latino-americanas, feita por jornalistas e comunicadores
da própria região.
Ex-editor do 'Le Monde Diplomatique', Ignacio Ramonet é jornalista e professor espanhol radicado na França
“Nos últimos 15 anos, todos os governos
progressistas que chegaram ao poder democraticamente na região vêm sendo
mantidos por via eleitoral. Nenhum deles foi derrotado nas urnas. Por isso, a
resistência à mudança vem sendo cada vez mais brutal, apelando para novos tipos
de golpes, alguns com fachada judicial, parlamentar, e sempre com forte ajuda
da mídia”, disse Ramonet, lembrando os casos do Paraguai, Honduras e investidas
recentes na Argentina e no Brasil.
Ao lado de Ramonet, a presidente da empresa,
Patricia Villegas, lembrou que as principais coberturas do canal até agora
foram justamente em países que não participam do consórcio, como a campanha
militar contra a guerrilha das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia) e o golpe contra o presidente Manuel Zelaya, em Honduras, em 2009.
“Naquele momento, o mundo só pôde acompanhar o que
acontecia em Honduras, minuto a minuto, graças ao sinal da Telesur. Porque as
emissoras privadas globais ou não estavam lá, e as que estavam preferiam
ignorar”, disse.
Para Ramonet, o grande mérito da Telesur ao longo dessa década foi oferecer “uma outra leitura” sobre os acontecimentos da América Latina e do mundo, fugindo das perspectivas de redes privadas como CNN e Fox News que, para ele, seguem praticamente a mesma linha.
“Estou convicto de que a CNN vai desaparecer, não
por falta de capital, mas por falta de audiência”, previu Ramonet, falando por
teleconferência desde Caracas para a plateia de jornalistas, intelectuais e
estudantes reunida no auditório equatoriano. “A Telesur não tem concorrência.
Esse é o sonho de qualquer canal. Porque as outras fazem mais ou menos a mesma
coisa.
”.
Convergência
digital
Segundo o jornalista — que é espanhol mas vive
radicado na França desde 1972 —, a maior mudança na comunicação nos últimos dez
anos foi a integração das várias plataformas, a chamada “convergência digital”:
smartphones, tablets e computadores, que roubaram da televisão o posto de tela
principal da mídia. E, se antes as inovações tecnológicas estouravam primeiro
nas cidades ricas da Europa e dos EUA, aponta Ramonet, agora já são
disseminadas simultaneamente nas grandes metrópoles da América Latina e de
outras regiões em desenvolvimento.
“As novas plataformas abandonam a continuidade que
obrigava o espectador a assistir tudo linearmente; agora ele pode ver o que
quiser, na ordem que quiser. Os canais que se adaptarem melhor são os que têm
mais chance de sobreviver”, aponta.
Patricia Villegas enfatizou que a adaptação às
novas plataformas é uma de suas maiores preocupações da Telesur. “Não adianta
fazer conteúdos-espelho, que se repetem de forma idêntica na TV, na web, no
Facebook, no Twitter. Os conteúdos precisam ser complementares e diferentes,
porque o público os consome de formas diferentes”, disse ela.
Congresso intitulado 'Comunicação e Integração Latino-Americana' acontece em Quito, capital equatoriana
Congresso intitulado 'Comunicação e Integração Latino-Americana' acontece em Quito, capital equatoriana
Além do décimo aniversário, completado nesta
sexta-feira, dia 24 de julho, a Telesur celebra também um ano desde o início da
produção de conteúdos em inglês. “Não estamos traduzindo informações, mas
produzindo diretamente em inglês”, enfatizou Patricia Villegas. Segundo ela, a
entrada na esfera anglófona sinaliza a intenção da empresa em ampliar sua
presença global. Por enquanto restrita ao site e às redes sociais, a Telesur em
inglês espera iniciar em breve transmissões também como canal de televisão, com
sede em Quito.
Sul geopolítico
“Na América Latina, vários intelectuais e
lideranças políticas têm o vício de só ver a relação regional com o 'gigante do
norte', os Estados Unidos. Mas também é extremamente importante considerar
nossa relação com a China, a África, o Oriente Médio. A Telesur tem a tarefa de
transportar a missão progressista da América Latina para o resto do mundo”,
disse Ramonet.
Justamente por isso, Villegas diz que o canal
continua expandindo seu universo de pautas para outras regiões, como o ataque
da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar
ocidental) na Líbia, em 2011, e mais recentemente na crise financeira da
Grécia, quando o canal enviou jornalistas para Atenas e investiu na cobertura
ao vivo.
“Às vezes
perguntam aos nossos repórteres: 'O que vocês estão fazendo aqui?'. Estamos
aqui porque a nossa ideia de 'sul' não é apenas geográfica, mas principalmente
geopolítica. Enxergamos a informação como um serviço, e não como mercadoria”.
“Durante muito tempo na América Latina, o
jornalismo era um privilégio das emissoras privadas, e as TVs públicas ficavam
relegadas à programação educativa, cultural e folclórica. Daí a importância de
investir em produzir informação numa tela pública. Não se trata de um monólogo
do Estado, mas de dar voz também aos grupos comunitários, como indígenas e
afrodescendentes, contra a folclorização dessas comunidades”, concluiu Patricia
Villegas.
Da teoria à prática
A proposta do congresso em Quito é ser não apenas
acadêmico, mas também proporcionar a troca de experiências práticas em
jornalismo e gestão de mídia voltada para a integração regional, ambos sob uma
perspectiva crítica. A ideia é que professores, intelectuais e estudantes de
fato dialoguem com jornalistas, diretores de emissoras e agências de notícias e
gestores públicos do setor.
“É fundamental a teoria que reflete sobre a prática
para dar-lhe sentido e compreender melhor a realidade para fazer diferente”,
comentou Ramonet.
O diretor do CIESPAL, o espanhol Francisco Sierra,
lembrou na fala de abertura que a tentativa de descrédito sobre a Telesur e
outras mídias públicas, assim como contra as iniciativas de regulação e
democratização da mídia pelos governos da “guinada à esquerda”, lembra muito o
ataque da mídia privada feito contra a campanha da Nova Ordem Mundial da
Informação e Comunicação (NOMIC) e o Relatório MacBride da Unesco (Órgão da ONU
para Educação, Ciência e Cultura), entre os anos 70 e 80.
Ele recordou o legado do comunicólogo boliviano
Luis Ramiro Beltrán, falecido na semana passada, que não apenas teorizou sobre
a comunicação latino-americana, mas ajudou a promover fóruns e encontros
internacionais para criar iniciativas práticas de alternativas midiáticas na
região naquela mesma época.
Nos dois dias do evento, que reuniu mais de 400
pessoas, também estiveram presentes outros nomes do pensamento crítico da
região, como o argentino Atilio Borón, do Clacso (Conselho Latino-Americano de
Ciências Sociais), e o colombiano Omar Rincón, do Ceper (Centro de Estudos de
Jornalismo, em espanhol).
Mais de 100 trabalhos acadêmicos foram inscritos
para apresentação. Entre eles, o do geógrafo André Pasti, doutorando pela
Universidade de São Paulo, que discutirá a trajetória das lutas pela
democratização da comunicação no Brasil.
“É importantíssimo aprendermos e nos inspirarmos
com os processos de democratização da comunicação em curso em outros países da
América Latina. O congresso permite esse diálogo”, disse Pasti a Opera Mundi.
Pedro
Aguiar | Quito
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