De saída, vou ao que não me agrada na
Folha: o deficit de sobriedade no tratamento da notícia em geral e a tentativa
muito frequente de atrair o leitor pelo estardalhaço dos títulos, não raro em
franco contraste com a banalidade e a pouca importância do que é exposto na
matéria; a tendência a estigmatizar e debochar de certos grupos de pessoas,
pela forma como a notícia é exposta; a antipatia a tudo que vem do setor
público, a fazer crer que à esfera privada se deve tudo que aconteceu de
positivo no nosso país,
ignorando a parcela importantíssima de contribuição que
a sociedade brasileira teve de extraordinários agentes públicos, como José
Bonifácio, Pedro 2º, Rui Barbosa, Getúlio Vargas, Roberto Campos, Celso
Furtado, Juscelino Kubitschek, Rubens Ricupero e vários outros; o caráter ralo
e superficial do noticiário internacional; e, por último, um certo menosprezo
por certos aspectos da cultura nacional, em oposição à desmesurada importância
atribuída a alguns temas e atores da pauta, digamos, não nacional. Em suma, o
velho complexo de vira-lata...
Sobre o último tópico, trago um exemplo bem
ilustrativo, que me causou uma certa indignação na época. Em 2010, na mesma
semana em que morrera o nosso inesquecível Paulo Moura, músico de indiscutível
talento e talvez então a maior expressão da música instrumental brasileira, o
jornal dedicou uma matéria de capa do seu caderno cultural não ao grande músico
desaparecido, mas a uma obscura e inexpressiva cantora norte-americana! Moura
foi relegado à antepenúltima ou penúltima página da "Ilustrada", como
se a sua carreira e a sua espetacular produção artística em nada se
diferenciassem da de um artista de segunda ou terceira linha.
No domínio da política, o jornal erra
redondamente no seu esforço de querer se mostrar neutro. Não é. Até admito que
nos anos não coincidentes com o calendário eleitoral nacional e estadual o
noticiário apresenta um pouco mais de equilíbrio. Mas tão logo se aproximam
esses pleitos, o jornal começa a se agitar e a pauta, a esquentar
artificialmente. Como muitos leitores e analistas, acho que seria mais
transparente a direção do jornal pura e simplesmente declarar as suas
"afinidades eletivas", como fazem de tempos em tempos o "Le
Monde", o "New York Times", a revista "The Economist".
O leitor entenderia e aplaudiria.
Mas o pior não é essa falsa neutralidade.
Como outros periódicos brasileiros, o jornal não tem refletida em suas páginas
a grande diversidade da sociedade brasileira. Choca-me, por exemplo, a ausência
do olhar do negro, do mulato e de outros segmentos sociais culturalmente e socialmente
identificados com essa relevante e majoritária parcela da nossa sociedade. É
como se o jornal e os seus colunistas se dirigissem exclusivamente às classes
média alta e alta, supostamente caucasiana, a que muitos jornalistas
equivocadamente julgam pertencer. Nesse contexto, não são nada surpreendentes
as campanhas que a Folha promoveu contra as ainda raquíticas políticas sociais
implantadas no país nos últimos anos, como cotas em universidades, ProUni e
outras. O jornal e alguns dos seus jornalistas e colunistas parecem ignorar por
completo o que seja, de verdade, uma sociedade inclusiva e com amplo
desenvolvimento econômico e social, que é o sonho da maioria dos brasileiros.
Há outras deficiências a lamentar: a natureza
excessivamente opinativa do diário, em detrimento da apuração e da pesquisa
jornalística em profundidade; a ausência de especialistas de peso em matérias
altamente técnicas e fundamentais da nossa institucionalidade; o excesso de
notícia sobre Brasília e os bastidores da política; a minguada cobertura de
temas realmente interessantes sobre o país e o seu entorno, na perspectiva do
leitor, como bem ressaltado recentemente por Nizan Guanaes; a quase ausência de
cobertura relevante de assuntos da América Latina e Africa, o que leva à reprodução
e ao enraizamento de vieses típicos das elites da nossa região, como o
eurocentrismo e o norte-americanismo.
Erram porém os que pensam que a minha visão
sobre a Folha é predominantemente negativa. Não é. A Folha foi a grande
referência cultural e política dos jovens da minha geração, os que consolidaram
ou formaram a sua consciência político-cultural e social já no ocaso da
ditadura. Lembro-me da façanha que era obter um exemplar do jornal fora do eixo
Rio-São Paulo-Brasília. E que deleite era consegui-lo! Naquela era
pré-tecnologia da informação, em que o país era um deserto de ideias,
repressivo, misógino e preconceituoso ao extremo, ler a Folha era como um
bálsamo; os temas abordados pelo jornal eram objeto de análises e discussões
acirradas pelos jovens de então; e o estupendo time de colunistas e
correspondentes internacionais que o jornal ostentava, cada um mais instigante
que o outro: Gerardo Mello Mourão, Osvaldo Peralva, Janio de Freitas, Paulo
Francis, Tarso de Castro, Flavio Rangel, Clóvis Rossi.
Nos dias atuais, porém, penso que o papel
mais importante cumprido pela Folha, ao lado de outras publicações igualmente
importantes, é o de fazer o contraponto eficaz ao poder político em geral. E
isso, como se sabe, é essencial a qualquer democracia digna desse nome. Pena
que esse contraponto também não exista em relação a outros fatores reais de
poder.
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