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A Renúncia do Governador
Às
vezes acontece.
O
diretor responsável, o homem que carrega nos ombros a política editorial da
emissora, o chefe supremo do jornalismo, a autoridade máxima da redação, o
homem de confiança do dono de empresa, fica a ponto de tomar um furo
catastrófico.
A
rapaziada, um ou dois degraus abaixo, adverte, mas Pedrosa, o filho dileto
dos Deuses, acha que tem uma poderosa carta na manga. No caso, um contato
próximo, de absoluta confiança - porque tem que ser de absoluta confiança!
- que pode mudar a maré montante. Segundo o contato, o governador em
exercício não vai renunciar. Embora todo mundo ache que vai.
O
“todo mundo” são as outras redações, de emissoras concorrentes, rádios, etc,
etc. Então, quando "todo mundo" espera a saída do governador para
as próximas horas, Pedrosa está certo de que não haverá renúncia.
Nesses casos
quem tem a informação, também encarregado, às vezes, de vazar informações -
é Olivério Dantas, o secretário particular do governador, que deve ligar
passando a decisão: renúncia cancelada de novo.
O Semideus da redação (Deus é o dono da TV, do jornal impresso, da
rádio e também) do maior portal de Internet) acredita no seu informante.
Acreditar faz parte do seu DNA, pelo menos até que esse informante falhe.
E isso acontece. Mesmo quando o informante é agente duplo e se gaba,
lá nos gabinetes de Brasília, de saber o que jornal da noite vai noticiar
dali a duas horas.
Um jornal do Rio, nos velhos tempos em que a mídia impressa contava,
pagava os salários de um colunista eventual - aquele que escreve
sazonalmente um artigo ou outro – só por causa de sua proximidade com um
ex-presidente, ainda com alguma influência nas chamadas antessalas do
poder.
Seus serviços eram solicitados uma ou duas vezes por semana, mas no
dia em que então presidente implantou seu Plano Econômico - que proibia
quaisquer aumentos de preços, sob quaisquer circunstâncias - "fiscais
do presidente" tornaram-se celebridades da mídia e houve ameaça de que
alguns bois fossem recolhidos nos pastos - o colunista acidental passou a
ter que trabalhar duro.
Enchendo o saco dos assessores diretos do presidente. E até do
próprio, que não teve jeito senão atender ao telefone umas duas ou três
vezes. Em troca, presidente tinha total respaldo do jornal.
Mas no caso da renúncia do governador...
- O
homem já renunciou Pedrosa!
-
Alguém já leu a carta, o texto da renúncia já chegou ao nosso site?
-
Não, mas até o pessoal da de Minas já tem a matéria!
-
Eu tenho informações de que a renúncia não vai acontecer.
- Outra vez?
- Outra vez, o homem é frio, conhece o jogo.
- Mas, olha só Pedrosa, todo mundo, a concorrência já tá com a
matéria no ar há pelo menos quinze minutos!
-
Vão ter que voltar atrás!
Pedrosa tinha informações seguras de que o homem ia negacear pela
segunda vez. Afinal o informante, assessor informal no gabinete, era nada
mais nada menos, que o segundo nome da hierarquia no pool de empresas do
empresário/governador.
Governador agora acuado pela Justiça Estadual, as provas -
entrevistas de ex-parceiros tirando rapidamente o deles da reta e coisa e
tal - algumas fajutas, outras concretas, brotando a toda hora em TVs,
rádios e jornais.
O
tempo passava, o editor Francisco Pedrosa queria mais tempo para dar a
notícia sozinho. A não renúncia do governador era certa mesmo? Pedrosa
começava a sentir que, ele próprio, já tinha uma pontinha de dúvida. As
chamadas nas rádios e TVs da concorrência já estavam no ar.
Mas
era preciso confiar no taco, arriscar. "Tudo o que o homem desejou na
vida foi ser governador; não vai entregar isso de graça", tinha dito o
assessor no meio da tarde.
Mas a
confirmação da renúncia vem dois minutos depois. Uma TV a cabo entra com
imagens em tempo real da saída do governador do palácio, em meio ao tumulto
habitual nessas horas. Pouco depois, alguém da sucursal avisa que vai
passar o texto da carta: duas ou três linhas informa o repórter autor da má
notícia. Acabou.
O
Semideus Pedrosa está meio perplexo, manda que alguém faça uma ligação...
Melhor, ele mesmo faz, pelo celular, mas o número do assessor informal está
na caixa postal. O diretor responsável manda que liguem para o chefe de
gabinete, mas desiste um minuto depois.
Vai para a
sua sala. Naquele minuto o repórter especial Ronaldo Freitas já está
finalizando o texto que vai interromper o capítulo da novela das nove.
Pedrosa
sabe que cometeu um erro e a exclusividade a não renúncia contra tudo e
contra todos o pretenso furo de reportagem virou fumaça. O problema é que,
a essa altura, os donos da emissora já sabiam o que tinha acontecido. "O
jornal já sabe da renúncia?” – ligações com esse tipo de pergunta já deviam
estar enchendo a caixa postal, dos proprietários da empresa. Pedrosa
imagina vozes, anônimas para ele, mas confiáveis para os irmãos
empresários, chegando aos celulares dos patrões.
Naquele momento, o mais velho está bebendo uísque sozinho no terraço
do apartamento em Ipanema, o do meio, na cama com a modelo, num apartamento
coincidentemente na mesma quadra e o terceiro, no banco de trás do carro,
com o filho, a caminho da casa de campo em Itaipava.
Pedrosa imagina quanto tempo vai passar até que seu celular –
exclusivos para comunicação com os três irmãos vão tocar na sua sala e a
cobrança venha, nas asas nada suaves da voz de um dos filhos do patriarca:
“você não disse hoje de manhã que o homem ia ficar?”
Ou
nas asas do próprio pai dele, naquele momento lendo um artigo de revista em
que o jornal da família é massacrado.
A voz do patriarca é gelada como os
cubos de gelo que ele, Pedrosa, põe agora no copo de uísque. O mesmo uísque
que bebe com certa regularidade depois que se tornou diretor responsável. E
"está autoridade na emissora".
E até acima de algumas
autoridades, bajulado pelo secretário estadual de Fazenda ou mesmo pelo
ministro do governo federal ao qual o jornal faz uma oposição light. É uma
sensação agradável e ele tem que se esforçar para não deixar transparecer. Um
prazer que, às vezes, faz com que se distraia.
-
"Desculpe, secretário, eu não entendi".
-
"Bom eu estava dizendo...”.
Mas o telefone não toca. O subeditor de política entra sem bater.
- Já
estamos com a renúncia no ar. Mas Pedrosa já sabe, acabou de desligar TV e
se sente abalado.
- OK.
A carta...?
- Na
íntegra. São duas ou três linhas, nada mais. O Verniaux está preparando um
editorial para o Jornal da Noite.
-
Nada de editorial, não quero opinião do jornal sobre a renúncia.
- Tá
certo.
Pedrosa lembra que são dez para nove e quarenta. O pessoal da
editoria de política também não tinha cruzado os braços, apesar da opinião
dele e um resumo da gestão do governador que acabara de sair já estava
pronto para o mesmo Jornal da Noite. Um subeditor estava finalizando o
texto sobre a vida do renunciante.
Renunciante? Era essa a palavra certa
para o momento? Não sabia. De repente, seu mundo estava sendo abalado e o
risco de quebra das colunas que o mantinham de pé parecia absurdamente
plausível.
Pensou na mulher, nos filhos pequenos, no apartamento de luxo,
alugado, mas se o mundo desabasse, teria que voltar para o seu três quartos
num condomínio de classe média na Barra, comprado pela Caixa, nos tempos em
que ainda não passava de um editor na área de cidade: lixo demais nas ruas,
praias poluídas pelo cocô da cachorrada, inauguração de hospital, problemas
no zoológico, uma sessão especial na Academia Brasileira de Letras, o
presidente com o governador inaugurando obras em uma favela, o bueiro
explodindo em uma rua de Ipanema.
E justo na rua onde morava o
segundo irmão, a Cedae tinha acabado de abrir um buraco gigantesco. O homem
não tinha conseguido sair de casa com o carro, os seguranças tiveram que ir
chamar um táxi.
“Me
chama o Everardo! Ou melhor que isso, pergunta se a Cedae já tapou o buraco
na rua do Doutor Heleno?"
A resposta tinha vindo segundos depois.
“Pedrosa, aquilo é coisa pra dois três dias!" – tinha dito pela
manhã.
“Absurdo".
“Não é não. Os caras vão trocar um pedaço de adutora, mas têm que
tomar cuidado com a tubulação de gás, os cabos da TV..."
Pedrosa lembra-se de que um acordo, no governo anterior, permitira à
empresa de TV por assinatura do grupo passar seus cabos, praticamente sem
custos, pelos mesmos caminhos subterrâneos das tubulações de água e gás.
Ele mesmo tinha conversado com o prefeito sobre o assunto.
"Se as outras empresas não criarem problema..."
"Com certeza não vão, prefeito”.
A
coisa foi feita. Os técnicos da TV por assinatura tiveram apenas que
implantar um bueiro a mais na calçada e tudo certo.
Pedrosa ganhou elogios do irmão mais velho que, uma vez, quando ele
, Pedrosa, dava seus primeiros passos na redação, tinha apontado para uma
TV e profetizado "essa porra é a nossa máquina de fazer
dinheiro". Há quantos anos? Pedrosa não se lembrava mais.
O telefone não toca, o pessoal da redação está relaxado e a renúncia
do governador é o assunto. Carlos Roberto Capa, o repórter preferido dos
deuses se aproxima.
- Queria te lembrar que, até agora, nos só demos um ”urgente” de
quatro ou cinco linhas Temos um texto maior pra entrar no próximo intervalo
da novela. Dois minutos e meio.
- Tá bom. O governador...
ex-governador é... era amigo do jornal; não vamos fazer muito escarcéu.
Falava e ouvia suas próprias palavras ecoando, uma coisa estranha.
O telefone toca. É um
velho jornalista, que trabalhara com o pai dos Deuses. Com mais de 80 anos
tinha um cargo fictício de Diretor de Jornalismo, não apitava mais nada,
mas, talvez para merecer o salário, ligava toda noite para a redação.
- Pois não, Doutor Matheus. Já saímos com a notícia no intervalo da
novela. Vamos entrar com outro texto no próximo intervalo. Nós estamos
fazendo apenas o relato dos acontecimentos. Nada mais. Ok, ok, a coisa está
discreta, o mais discreto possível, dadas as circunstâncias, Doutor
Matheus.
Pedrosa fica um pouco mais calmo. Dentro de alguns minutos vai estar
confortavelmente instalado no banco de trás do Passat, a caminho do
apartamento no final de Leblon. A tempo de tomar um banho, esperar (as
tradições têm que ser respeitadas) pelo menos 45 minutos até que Rosália
troque duas ou três vezes de vestido, finalize a maquiagem e, depois, a
recepção.
O
telefone toca.
É o Deus Supremo, o maior dos Deuses no Olimpo da empresa. Quer
saber por que as emissoras da concorrência, com muito menos recursos, já
estavam no ar, desde cedo, com a renúncia do governador e eles não. Pedrosa
pensou estar ouvindo o som de cubos de gelo num copo de cristal.
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Garden
Bar
O
táxi, vindo da Presidente Vargas, dobra na Rio Branco. A perspectiva da
demissão , sair do jornal estava se tornando uma realidade visível como o
obelisco, crescendo lá no final da avenida. Obelisco onde os homens de
Getúlio Vargas tinham amarrado seus cavalos (simbologia, história ou puro
marketing?) no dia 1º de novembro de 1930, vitória da Revolução.
A cena, que irritara o pai durante toda a vida, estava arquivada,
no cérebro, na pasta “ficção”. Durante muito tempo achava – sem ter a
menor idéia do motivo - que aquela história não passava de conversa fiada
de um carioca ressentido. O pai, também jornalista, tinha sido um,
apoiador do Brigadeiro Eduardo Gomes, derrotado nas eleições de 45 pelo
General Eurico Gaspar Dutra, apoiado por Getúlio.
Jack, uma dia diretor do Grupo de Estudos Cinematográficos, com
sede no histórico prédio da União Nacional dos Estudantes, na Praia do
Flamengo, tomara o rumo oposto. Mas quando as discussões tornavam-se mais
ríspidas, os dois, como num roteiro que devia ser seguido, mudavam de
assunto. O futebol, a paixão do pai
pelo Flamengo – Jack também torcia pelo Flamengo – os jogos do
campeonato carioca, Dida o grande nome do time na década de 50 era tão
bom quanto Zico!?
O
obelisco vai ficando mais próximo enquanto o carro percorre lento a Rio
Branco, muitos sinais, milhares de pessoas na calçada, ônibus dando
fechada nos carros para pegar passageiros no ponto. O obelisco irritara o
pai e a história dos cavalos amarrados ali era, para Jack, uma lenda.
Isso até encontrar num livro a tal foto: um cavalo ao fundo, sobre
os degraus do obelisco; duas filas de papagaios-de-pirata, lado a lado,
abrindo espaço para o trabalho do fotógrafo. Talvez o cavalo em questão
fosse o único levado até ali para a foto.
Pede ao motorista que
encoste. Paga, quase é derrubado por um office boy apressado quando fecha
a porta do táxi: Todo mundo apressado naquele final de tarde.
Decisão
tomada? Pedir demissão antes de ser demitido? Ou está apenas dando curso
a uma paranóia. A verdade é que não tem a menor idéia do que vai fazer
dali pra frente. Procurar um outro jornal? O terceiro em menos de três
meses, aceitar o convite formal para trabalhar na assessoria do Instituto
Nacional do Café, com um salário presumivelmente melhor? Largar a merda
toda pra lá, dar um tempo, gastar a grana do acordo em férias bem longe
do Rio?
Tinha atravessado num sinal
congrstionado, esbarrando em pessoas vindas na direção contrária – estava
na contramão dos outros pedestres? – e, distraído passa pelo prédio da
Biblioteca Nacional. Retornou quando percebe que já está na esquina da
rua Santa Luzia.
A maré tinha começado a mudar depois do episódio do cardeal, na
Mangueira? Não rinha certeza.
A lembrança é clara: o Cardeal
estava em “visita ecumênica” ao bairro de São Cristóvão com
cobertura exclusiva do jornal. (Que outro jornal ia se interessar por
aquela presepada?). Na ida ao Sindicato dos Metalúrgicos, tinha se
aproximado para a entrevista e depois de ouvir as arengas habituais sobre
as razões da vinda ao bairro, engatou uma pergunta sobre “notícias,
veiculadas nos jornais dando conta da prisão de alguns filiados daquele
mesmo sindicato”. “Eu não falo de política!” Voz estridente, seguida de
um movimento brusco e batida em retirada do auditório onde a imprensa (no
caso apenas ele) estava sendo recebida para a coletiva.
Mas o problema mesmo tinha
acontecido no dia seguinte, um domingo de verão, em plena favela da
Mangueira. Estava atrasado porque o carro de reportagem, com fotógrafo a bordo, estava cobrindo um
acidente com morte em Ramos e demorou mais do que o esperado para chegar
ao local da visita.
Na comunidade, sem cobertura da imprensa, a vista Sua (...) resolveu
jogar a visita para o alto e a comitiva cruzou com o carro da reportagem
na Rua Visconde de Niterói.
Para cumprir a pauta, tinha ido ao local da tal visita ecumênica,
a quadra da Escola de Samba, onde dúzias de crianças com bandeirinhas na
mão esperavam sua (eminência) e não estavam entendendo nada. Jackm fez
algumas entrevistas, rápidas, na casa de um líder comunitário e sentiu a
decepção.
Uma decepção que, no primeiro momento não entendeu, porque achava
que a rapaziada, ali estava apenas cumprindo a pauta, pouco cagando para
o cardeal.
Mas viu que não era assim. Algumas mulheres e parte da bateria da
escola, escalada para a recepção, pareciam, para ele, absurdamente
tristes. A decepção dos mangueirenses tinha sido transportada para a
lauda e meia de matéria.
A coisa teria morrido por ali se as dez linhas tivessem chegado às mãos do pessoal do
copy, ou algum editor de plantão na redação. Ao invés disso, por artes de
algum demônio do jornalismo, o texto original, foi direto para a oficina
dois andares abaixo. O revisor também não deu a mínima e, às oito da
manhã do dia seguinte Sua (Reverendíssima) ligou para a casa do dono do
jornal.
Desde
a advertência verbal (depois por escrito)
e alguns resmungos do tipo: “Pra que isso?”, “Tá ganhando o quê
com isso?” “Porra, você não sabia que o cardeal era amigo do homem!?”,
solidários do pessoal da redação a paranóia tinha começado. Era visível a
má vontade da chefia? Havia um certo constrangimento?
A
advertência por escrito sobre a matéria, considerada desrespeitosa pela
direção, acabou sendo extensiva ao copy desk e, ouviu falar, também ao
chefe da revisão. Mas depois daquele domingo fatídico... “
-
“Domingo Fatídico” é um título bom pra triller, tinha dito um velho
repórter que estava se aposentando, - Jack ainda era olhado com reservas
pelos novos colegas – quando conversavam sobre o episódio.
Podia ser paranóia. Jack odiava, mas tinha ouvido a palavra, mais de uma vez nas
conversas; “paranóia pura, toca o barco, que ninguém da direção se lembra
mais”. Mas estava começando a achar que as pautas que recebia pareciam
deixar claro que sua permanência no jornal era questão de tempo.
Achou
que estava realmente sendo jogado pra escanteio quando sua pauta.
“Aumentos abusivos nos preços dos alimentos no Rio”, foi trocada na
última hora. Luiz Carlos Rachid, o bom repórter que falava francês
correntemente, foi mandado investigar os tais aumentos e para ele sobrou uma
exposição de canários roller, no centro da cidade. Resolvida (uma
resposta direta ao chefe da reportagem que fizera a troca) em vinte
minutos pelo telefone.
O
organizador da mostra foi alcançado na padaria ao lado da loja, na Rua
Dias da Cruz, no Meier, especialmente cedida para a exposição de mais de
50 gaiolas, com canários a serem premiados segundo quesitos como cor, porte e
canto. Aprendeu que os de cor vermelha, produto de manejo à base de ração
especial e cenoura, embora mais vistosos para o respeitável público, nem
sempre levavam a melhor nos concursos.
“Algum
prêmio para os vencedores?” “Uma taça, medalhas, diploma.” “Nossa
associação ainda não dispõe de recursos para vôos maiores. Sem
trocadilhos.” “Ok, obrigado”. Fechou a matéria com a relação dos
premiados e um fotógrafo que estava na Zona Norte foi avisado pelo rádio
do carro que deveria dar uma passadinha na mostra.
Naquela tarde, por
volta de cinco e meia, depois de ler, reler e mexer no texto da segunda
matéria do dia – “Mendigos são recolhido na Zona Sul” - foi mandado dar
um pulo na Biblioteca Nacional. O chefe da reportagem sabia que o horário
dele estava terminando e coisa e tal, mas precisava de alguém para
cobrir a doação de “livros
raríssimos” que seriam entregues aos representantes do Ministério da
Cultura, no Rio.
- Coisa rápida,
o homem está lá esperando a gente; o pessoal do Ministério é que
telefonou pedindo cobertura. Coisa simples. Você dá conta em quinze
minutos.
Meia dúzia de
repórteres já estavam falando com o doador.
- Eu gostaria
de saber o porquê da doação”?
- Meu filho,
como você pode ver eu estou muito velho. Portanto...E depois, embora eu
lamente, não há ninguém na minha família que se interesse por livros
raros.”
A diretora,
encarregada de receber formalmente a doação veio até onde ele se despedia
do doador:
“Como é, para
a biblioteca receber uma doação como essa?”
“Eu estou
simplesmente maravilhada. Nós já conhecia a coleção do Professor Brunges,
tínhamos acertado a doação há mais de dois meses mas...é sempre muito
emocionante ver esses livros, pegar neles... A primeira edição de Dom
Casmurro de Machado de Assis...” Há uma bíblia que, dentro de alguns dois
ou três dias vai ser avaliada por um especialista e nós vamos poder
confirmar, que foi impressa no século dezoito!”
- Por acaso
há uma cópia da lista dos livros doados?
- Claro, vem
comigo que eu providencio.
As oito da
noite meia dúzia de frases tinham ficado na cabeça; as anotações e a
listagem dos livros no banco do táxi. Felizmente tinha conseguido ligar
para a biblioteca e uma boa alma, que se atrasara por causa da cerimônia,
ditou, os nomes de alguns dos mais de 50 livros doados pelo professor
Lício da Cunha Brunges. O nomes dos autores também chegaram via telefone.
Dava para montar uma lauda e meia. e não duas e meia, como tinha pedido o
editor de cidade.
- Quê é que
tá acontecendo, porra?
Quem
pergunta é Ronaldo Freitas redator e ex-editorialista no jornal, onde tinham trabalhado juntos,
também demitido após a chegada dos
novos donos. Freitas era, agora, editor da página de polícia e entre ele
e Jack havia uma espécie de cumplicidade.
-
Parece que vão me demitir. To sentindo isso a uma, duas semanas. Nos
últimos tempos só faço matéria de merda, exposição de canários, limpeza
de árvores no campo de Santana, distribuidora de gás com problemas nos
encanamentos, doação de livros...
- Ta indo pra casa? Te dou uma
carona.
-
Meu carro tá no pátio.
-
Então me espera naquele boteco lá no Jardim de Alá. Aquele que vocês
pinguços costumam freqüentar.
- O Garden?
-
Isso, o puto do meu filho deu pra baixar lá também.
- O
lugar é tranqüilo, se eu fosse você não me preocupava.
- Te
vejo lá
Algum trânsito na São Clemente, depois Humaitá, tranqüilo, Lagoa,
Curva do Calombo, Corte do Cantagalo, seguindo direto pela orla até o
Jardim de Alá.
Freitas já está sentado, na mesa com o filho e
mais dois amigos dele. Os rapazes estavam esperando que Jack chegasse
para dar o fora.
-
-
Esse puto acha que meu dinheiro é
capim!
Ronaldo Freitas finge que está irritado, o filho estava a fim de
grana para o programa daquela noite.
-
Vai beber o quê.
Jack nem chega a
sentar porque o abraço no garçon sela um reencontro com alguém que
conhece desde os tempos do segundo grau, quando parava todas as noites no
Garden, com Ulisses, Luis Carlos, Gaúcho e um ou outro conhecido. Agora a
geração dos filhos de Freitas é que frequentava o bar, ao lado da rua que
levava de Ipanema a Lagoa. .
A vodca de Jack é generosa; Freitas bebe um uísque. Não especifica a marca e a familiaridade
dele com o outro garçon traz para Jack a certeza de que o editor de
Polícia é frequntador do Garden.
-
E então? O que é que você vai fazer? Logo agora que as coisas não vaõ bem
em casa.
Jack se arrepende de ter falado com alguem sobre seus problemas
com a mulher. De repente seu mundovai sendo invadido. Mas a culpa é dele
mesmo. Culpa de soltar a língua depois da quinta ou sexta vodca. Vai
responder, mas deve ter mostrado alguma dificuldade com a pergunta,
porque Freitas engata outra imediatamente.
- E
quanto ao trabalho no jornal.
-
Não sei... não sei ainda. Acho que vou pedir demissão.
-
Por quê?
-
Acho que vou ser chutado pra escanteio, o homem me olha de lado, o doutor
Alonso cruzou comigo na portaria e virou a cara.
-
Tem certeza que ele te conhece?
-
Absoluta. O Régis me apresentou dias depois de eu começar a trabalhar.
Depois que eu fiz aquela matéria sobre a mata atlântica, ano passado e
ele até veio me cumprimentar...
- Olha,
você tem o problema da bebida. E andou dando uns vacilos...
-
Não deixei nunca de cumprir uma pauta!
- Mas tem o cheiro da bebida, os olhos vermelhos, essas coisas que
você sabe muito melhor do que eu. E tem a expectativa Jack, o Tavares diz
que esperava muito mais de você e ele tem razão, Jack, você tá sempre
deixando claro que o trabalho não te interessa.
- Dá pra notar!? - um Jack quase divertidio. O “dá pra
notar” serve para a bebida e o desinteresse. – Bom, nos últimos tempos,
faz tempo eu só tenho bebido vodca. Vodca não tem cheiro...
Mas Freitas já está distante, o sinal abre e os carros cruzam
passam ao lado do Canal do Jardim de Alá, em direção a Lagoa.
- Que tal trabalhar comigo!? Na polícia não tem encheção de
saco.
-
-Talvez seja uma boa. É minha
única alternativa?
-
-
-
Isso é você quem sabe.
-
“A noite em Ipanema estava perdendo o brilho.” A frase tinha saído
da boca de um dos amigos de Góes que chegara, quando já estavam de saída.
Entrou no carro seguiu até a praia. Havia um cheiro forte de maresia no
ar e casais passeavam, aproveitando a brisa fresca. Algumas prostitutas
estavam na calçada da pista de subida para o Leblon.
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Paraty
A dona da
pousada tinha saído com o fotógrafo. Ficou sentado no banco, o copo d água,
esvaziado, na mão. O jardineiro, que estivera xingando baixo enquanto
molhava os pés de gerânio com o regador de plástico, também tinha sumido.
Ficou só, a calma da tarde quente e ensolarada.
Mas o
calor, ali, era parcialmente amaciado por centenas de samambaias choronas
que pendiam das ripas no teto da varanda da pousada. Jack sabia que ainda
devia estar pálido, efeitos de uma noite de sábado sem sono, o domingo
começando mal, a matéria começando mal, a sensação de que aquilo não ia dar
em nada.
E tinha
sido quase obrigado, por uma tonteira repentina, a sentar naquele banco no
meio do pátio, onde a profusão de plantas se misturava com gaiolas de
passarinhos. Viu coleiros, canários-da-terra, avinhados, um azulão, um
sanhaço. Uma camareira veio perguntar se ele precisava de mais alguma
coisa. E voltou, dois minutos depois com o conhaque.
Pediu o
segundo antes mesmo de segurar o copo. Conhaque podia não descer muito bem
com aquele calor, mas foi a primeira coisa que veio à cabeça, ainda
chacoalhada pelo som vagabundo da boate, na noite anterior. Podia ter
pedido uma cerveja, mas achava que cerveja não combinava bem com o que
estava sentindo naquele momento. Uma queda de pressão? A dona da pousada
devia estar achando que ele estava doente e não queria corresponder a essa
impressão.
A moça
chega com o segundo conhaque e um sorriso. Sorri de volta. O conhaque desce
enquanto ela espera para levar o cálice, sorrindo, morena, quase bonita,
pernas ótimas, “talvez pudesse marcar alguma coisa mais tarde?” Impossível,
claro; não ia haver um “mais tarde” naquele dia em Paraty. Tinha que
voltar, a mulher já devia estar amarga, sabendo que ele não ia chegar a
tempo de irem à recepção que o pai dela estava oferecendo ao escritor
argentino, que passava pelo Rio a caminho da Espanha.
Ela
iria sozinha. Já estava acostumada com as desculpas óbvias e repetitivas, a
conversa mole de matérias no meio da noite, incêndio em São Cristóvão,
desastre, com três mortos entre as ferragens do carro em Campo Grande,
prisão do bandido conhecido que ia render um quarto de página, quem sabe
chamada na capa... Antes, ficava muda no outro lado da linha; agora
desligava o telefone. Ou nem deixava que ele terminasse a frase.
Uma noite
alguém atendeu ao telefone na redação e contou que ele estava jogando
boliche perto da zona de prostituição no Mangue. Mas a desculpa estava
pronta. “Estava lá porque era provável que alguém, alguém ligado a uma quadrilha
de assaltantes de banco, fosse aparecer ali no Boliche...” Nunca conseguiu
saber quem tinha quebrado a regra, segundo a qual todo repórter sempre
estava “na rua a serviço”, esquema já aprendido em seu primeiro dia, na
redação.
Começa a andar entre gaiolas
e xaxins de samambaias, rosto roçado de leve pelas hastes verdes, algumas
com mais de dois metros de comprimento. O avinhado se assusta com a
aproximação e começa a pular rápido de um poleiro pra outro. “Canta, mais
foi pego há pouco tempo”, pensa. Os sanhaços, duas gaiolas lado a lado,
são mais mansos. Um tiê-sangue, vermelho e preto, mas de pouco canto,
desdenhado pelos passarinheiros. “Uma passada do IBAMA por aqui e adeus
passarinhada...” Quando está na frente da gaiola do coleiro, a dona da
pousada aparece com o fotógrafo. “O senhor está melhor?” “Claro, deve ter
sido o calor, calor e a noite mal dormida”. “Mas já está tudo bem?” “Está
tudo bem, tudo bem".
Pega a caneta e começa as desenhar palavras esparsas, códigos
próprios, nas laudas dobradas em quatro.
“Ela sabe alguma coisa sobre a casa? Alguma coisa que a distinguisse
das outras, por exemplo, um morador ilustre no passado? Algum fato, alguma
história antiga?” Nada, não sabe nada. “Tinha comprado a propriedade, que
estava em péssimo estado, há seis anos mais ou menos. Aliás, teve que
recuperar a fachada, com o pessoal do Patrimônio Histórico vigiando de
perto e encarecendo a obra. Uma imobiliária tinha intermediado o negócio,
mas o antigo dono ainda vivia ali mesmo, na cidade. Queria o endereço
dele?”
-
Não, não é preciso. No Patrimônio Histórico, talvez, eles saibam de alguma
coisa...
-
Não se pode alterar nada, até o material usado tem que ser especial.
Encarece muito. O senhor não vai encontrar ninguém do Patrimônio Histórico
por aqui num domingo.
-
Imagino. Há quanto tempo o pintor morava na pousada? Quantos anos ele tinha
mesmo?
-
Mais de oitenta anos.
- Estava doente, mas... continuava trabalhando?
Pela primeira vez os olhos dele e dela se encontram. Sem
constrangimento.
-
Continuava pintando mesmo depois que ficou adoentado? Muita gente vinha
visitar?
-
Ele só recebia o marchand. Ou a filha. Mas sempre de má vontade.
Uma fortuna em quadros que a filha tinha mandado recolher no mesmo
dia. Enquanto passeava pela casa, a quase certeza de que a dona da pousada
tinha escondido alguma coisa. Talvez os mais recentes, desconhecidos da
filha e do marchand.
- Os quadros, os mais recentes, pintados aqui, nos últimos anos,
estavam com ele?
O homem era considerado o último dos expressionistas brasileiros, a
maior parte da vida na França, até voltar, com certeza acuado pela
proximidade da morte.
- Ele voltou porque foi aqui, em Parati, que pintou o primeiro
quadro. A marina que abriu as portas para o sucesso, na década de 30. Os
quadros estavam com ele, mas a filha levou todos.
- Só por curiosidade.
Alguém já avaliou o quanto valem as obras dele? Quero dizer, as que ele
pintou ultimamente.
- No ano passado um quadro foi vendido por mais de trinta mil
dólares, disseram.
Resposta rápida, precisa. Olhos rapidamente procurando o chão do
pátio.
“Deve ter ficado com uns quatro ou cinco, que ninguém é idiota.
Aturou o velho esse tempo todo, não ia sair de mãos vazias. Daqui a quanto
tempo esses quadros vão estar decorando a casa de algum ricaço? É do jogo,
todo mundo se vira”.
-
Morte natural, nenhuma suspeita, nenhuma possibilidade?
Um
pequeno susto, olhos que brilham, raio caindo em pleno sol, mas ela não
precisa desviar o rosto.
-
Mas de jeito nenhum! Nós tomávamos conta dele!
A
matéria ia morrer por ali mesmo, bastava um telefonema avisando que não
havia o que levantar. O velho tinha morrido de doença, a filha arranjou
alguém para liberar o cadáver da autópsia e agora mesmo, na redação, a mais
de 200 quilômetros dali alguém, possivelmente um especialista trabalhando
no Segundo Caderno, devia estar preparando meia página de obituário. O
papel da repórter de polícia tinha terminado ali.
-
Queria mais um conhaque?
-
Claro, mas vou pagar. Os três.
-
Absolutamente.
-
Olha, é uma norma da casa, o jornal paga as despesas... eventuais.
Passarinhos muito bonitos, os seus.
-
Meu marido gostava, agora que ele está em São Paulo, eu cuido.
“Será que o maridão já sabe dos quadros, escondidos em algum lugar da
casa? Ou ela vai comer o doce sozinha? E se desse um tranco? “Sei que você
ficou com algumas pinturas do homem e coisa e tal...”
- Bom, nós vamos indo.
Abre a porta do carro de reportagem, o motorista acorda. Fica
esperando no silêncio da tarde, que a dona da pousada embrulhe num jornal
duas mudas de samambaias para o fotógrafo. A noite ainda ia demorar a
chegar e o motorista tinha fama de lento.
Jack joga o paletó no banco detrás, junto com mudas de samambaias.
Motorista e fotógrafo, na frente começavam a falar de plantas, velhas
casas, em subúrbios do Rio, com mangueiras como aquela... casas que tinham
mangueiras, pés de abiu... É, o abiu é uma fruta que não se encontra
mais...
A morte na praia
Ficou olhando,
divertido, Rita jogar a bolsa e os óculos escuros no balcão do quiosque,
cruzar os braços e virar de costas. Desde a saída do jornal, no centro do
Rio, ela, a estagiária rebelde, ou coisa do gênero, tinha se limitado a
olhar pela janela do carro, sem trocar uma palavra com ele ou mesmo com
Silas, o fotógrafo, sentado no banco do carona.
As únicas
coisas ditas no trajeto entre a redação e a praia tinham sido para o
motorista, respondendo a uma pergunta bem humorada sobre a matéria do dia
anterior. Matéria que não tinha dado certo. A pessoa que deveria ser
entrevistada, segundo ela, não apareceu e nem deixou recado.
A irritação
tinha sido imediatamente percebida pelo garoto do quiosque, que estava
servindo a primeira lata de cerveja. Um minuto depois de dar as costas, ela
se volta. Aparentemente ia fazer uma pergunta, mas deve ter desistido e
resolveu buscar o maço de cigarros da bolsa.
Ali, naquela praia deserta, numa
quarta-feira de julho, sem sol, a jovem, talvez futura repórter, tinha
ficado sozinha na primeira meia hora, até resolver sair do carro e procurar
abrigo no quiosque.
A
pergunta foi adiada, talvez à espera de alguma palavra, algum sinal da
parte dele. Mas preferiu ficar calado. Sabe que ela está irritada porque,
naquela manhã, fora informada de que deveria ir com a equipe da reportagem
de polícia a um condomínio, no litoral, onde um homicídio produzira a
manchete da página, dois dias antes, e estava tendo razoável cobertura de
todos os jornais do Rio. Apesar de, até aquele momento, nenhum outro carro
de reportagem ter aparecido na praia.
Acompanhar um repórter veterano na cobertura de um crime, devia ser
mesmo um castigo para quem acabara de sair da faculdade e sonhava com um
estrelato na imprensa.
Sorri
antes do primeiro gole. O pontapé inicial para quebrar o gelo.
-
Talvez você nunca tenha visto alguém beber as nove e meia da manhã.
-
Não, acho que não. Mas eu não me importo.
- É um
péssimo hábito.
A
pretensão de se explicar, de dizer que aquilo era comum entre os repórteres
do seu tempo, apenas meia verdade, mais folclore do que propriamente
realidade, é demolida por uma sensação de inutilidade.
Mas
o efeito da cerveja, somado a todo o uísque barato da noite passada, faz
com que embarque na viagem rápida para a euforia e, de repente, quase sente
pena da menina diante dele, frágil, a saia comprida, a blusa clara e um
colete de crochê bege, braços finos de pelos ouriçados pela temperatura da
manhã.
-
Posso fazer alguma coisa para você relaxar?
-
- Pode me
dar uma informação: quanto tempo, você que é tão experiente, acha que a
gente vai ficar por aqui?
- Quem
disse que eu sou “tão experiente”?
- Ouvi por aí.
-
Escuta, qual é o problema?
Ela
baixa os olhos pela primeira vez desde que tinham se encontrado naquela
manhã. E olha, sem ver, a areia quase branca, o mar chumbo acinzentado,
naquela praia deserta, com mansões de muros infinitos, portões de aço,
guaritas internas e cães, muitos cães que exibiam os dentes, dominados por
guardas de segurança com um pouco de escárnio nos sorrisos, deixando claro
que a qualquer momento podiam soltar as guias e deixar que as feras
estraçalhassem os intrusos.
-
Mandaram que eu colasse em você.
- Pra
quê?
- Sei
lá, não tenho a menor ideia!
- Eu
tenho; querem que você veja o horror de perto.
-
Isso é piada?
Não
era. Rita estava há poucas semanas no jornal e, segundo o editor de cidade,
ia ser uma boa repórter. Mas a autossuficiência, a defesa meio alucinada de
alguns pontos de vista tinham produzido estragos no relacionamento com quem
estava acima dela.
E
irritação. Então, o chefe da reportagem deve ter achado que era melhor ela
dar um tempo em áreas menos nobres, “pra ganhar um pouco de humildade,
talvez”.
Tinha sido avisado. Mas, ao
contrário da raiva, exibida no trajeto, Rita parecia um pouco acuada
naquele instante, abrindo a bolsa e tirando lá de dentro o maço de
Hollywood e o isqueiro.
O
fotógrafo tenta falar com a redação pelo rádio do carro, mas não consegue,
porque estão fora da área de cobertura da antena. O motorista brinca com o
vira-lata preto e branco que apareceu por ali, depois que os dois carros da
polícia entraram no casarão. Os portões foram fechados e os cães da mansão
pararam de latir. Olha o mar, a curva da terra logo ali, enquanto a
cerveja, quase congelada porque passou a noite no freezer, desliza pela
garganta.
O
rosto de Rita é bonito, olhos negros grandes, amendoados. Ela volta a
colocar os óculos escuros, apesar do dia nublado e ele vê, nas lentes, que
a praia parece não ter fim. O garoto, por trás do balcão do quiosque quer
saber se ele quer mais uma. Faz um sinal que sim com a cabeça.
-
- Acho que sei por que
você está irritada. E acho também que tem razão. Portanto, se você quiser
voltar pro carro e esperar, eu não me importo. Não precisa colar comigo,
como mandaram. Aliás, o que vamos ver lá dentro não vai ser nada agradável.
-
- E o que é
que nós vamos ver lá dentro?
-
- O corpo de
um homem que morreu há uma semana, dez dias, não se sabe muito bem. Uma
visão nem um pouco agradável.
-
- Você gosta desse trabalho?
- Não
me importo.
- - Como não
se importa!? Não gostaria de trabalhar em outra editoria... cidade,
economia...?
- Já
trabalhei, não dou a mínima.
-
Entendo. Ou melhor, não entendo. Passar o tempo todo acompanhando a
violência, crimes, desastres, desgraças... Coisas...
-... sem importância.
- Não
foi isso que eu quis dizer.
-
Foi, mas eu não me importo. E até concordo que são coisas sem a mínima
importância.
O
vira-lata cansou das brincadeiras com o motorista e veio para o quiosque.
Rita se abaixa. O cachorro se anima e começa a pular. Ela fica de pé, e
pede que ele não pule, que está sujando a sua roupa! Mas não adianta. O
garoto então sai detrás do balcão e dá um chute no cachorro, que se afasta
alguns metros. Rita reclama que o pontapé poderia “ter machucado o bicho”.
-
Trabalhar na área policial é mais cômodo?
-
Nem sempre. Às vezes as coisas se complicam, você tem que ficar no local
por mais tempo, essas coisas... Semana passada fiquei três dias em
Barbacena.
- - Sei
você não quer falar sobre isso.
-
Não, não me importo. O problema não é exatamente trabalhar na área de
polícia ou qualquer outra. No fim é tudo a mesma coisa.
- - Eu não
concordo. Eu não gostaria de trabalhar nessa área. Inclusive, porque não se
aprende nada, não se evolui profissionalmente.
-
- Ele
mesmo achava isso no passado. Tinha começado fazendo polícia porque esse
era o caminho normal para quem chegava às redações sem curso de jornalismo.
O outro caminho era começar pela editoria de esportes, coisa que não
entendia.
-
- Tinha
começado na polícia, passado pela editoria de cidade e retornado, porque
rapidamente descobrira que não tinha nada a ver com o jornalismo. Que não
se importava. Tempos atrás até assumira a chefia de reportagem, mas o cargo
só trouxe problemas. Não com os repórteres, mas com a direção de
jornalismo.
-
- Voltara a ser repórter
agora chamado de “especial”, fazendo matérias Brasil afora. Mas acabara
mudando de jornal. A pouca motivação
em uma assessoria de imprensa, onde o salário, aliás, era bem melhor,
provocou um razoável aumento no nível das bebedeiras diárias: uma semana
sem aparecer no Instituto Nacional do Cinema passou a ser uma prática meio
comum.
- Acabou
voltando para o jornal onde tinha começado na profissão, um pouco por
inércia, um pouco porque era conhecido e tinha um texto considerado
bom.
- - Para
dizer a verdade eu acho o jornalismo uma profissão de merda. Tanto faz
polícia ou economia, ou esportes...
Rita olha
para ele, espantada. Vai responder, mas o vira-lata está de volta. Chega,
desta vez mais calmo, abanando o rabo, mas sem pular. Ela se abaixa volta a
acariciar o focinho magro, quase totalmente preto em contraste com o corpo,
de pelos brancos.
- -
Desculpe, eu estou sendo meio grosseiro. Peço desculpas.
-
- A
terceira lata de cerveja custa a descer. Na verdade está apenas querendo se
reidratar, depois da noite bebendo sozinho, num bar perto de casa. Vai
jogar a lata pela metade na areia, mas recua. Pergunta ao garoto onde fica
o lixo.
- - É,
mas também pode ser que eu seja cético demais, desiludido demais ou talvez
cínico demais... Aliás, eu sou um péssimo exemplo. Além disso, boa parte em
que eu trabalhei como repórter foi no tempo da censura.
Porteira aberta para um tema fácil de discutir.
- Naquela época todo mundo sonhava com o fim da ditadura, achando
que a derrubada dos milicos ia produzir um jornalismo, abre aspas, imparcial,
limpo, criativo e outros adjetivos, fecha aspas.
Fica feliz porque conduziu a conversa para uma de suas teorias
preferidas. E repetida tantas vezes que o terreno fica seguro e os riscos
de se perder, sob o efeito da bebida, são bem menores. Além disso, parece
que consegue a atenção de Rita.
- E na
sua opinião...?
- Para
ser sincero, eu acho que a longo prazo a coisa não melhorou muito. Ou seja,
eu quase tenho saudades do tempo em que os censores estavam nas redações.
Pelo menos a gente podia sonhar com um jornalismo... que é, visto sob a
ótica de hoje, uma utopia. Nós íamos poder escrever sobre tudo, denunciar
tudo, e outras babaquices do gênero.
-
E...?
- Sabe que
aquilo é puro exibicionismo. Há muito tempo não acredita na sua própria
retórica. Uma retórica olhada com desconfiança pelos colegas de redação e
que, com o tempo acabou se tornando ridícula. Com o tempo ele mesmo tinha
deixado de acreditar totalmente no que dizia. Ou pior que isso, não ligava
a mínima. Mas ali, naquele momento, uma espécie de euforia alavancada pela
cerveja, quer impressionar a garota espevitada ali na sua frente. A saída é
não fugir do roteiro conhecido.
- - Ninguém
sentiu isso do dia pra noite. A coisa veio aos poucos e pra muita gente nem
veio.
- - Como
assim?
- - Bom, logo no começo o pessoal
achava que tinha que ir devagar com o andor. As matérias sobre cemitérios
clandestinos, sobre a guerrilha na região do Araguaia, por exemplo, faziam
os donos de jornais coçarem a cabeça e só foram para as páginas alguns anos
depois...
-
Mas você começou dizendo que sentia saudades dos censores nas redações...
-
É claro que isso é uma besteira. E das grandes. Em primeiro lugar, o jornalismo
anterior à ditadura também tinha suas limitações que, aliás, estão
completamente esquecidas. E acreditava-se que a derrubada dos generais
produziria um jornalismo novo, totalmente independente. Independente do
ponto de vista do repórter, bem entendido.
-
Mas...?
- - Pra
começar, naquele tempo, nas redações... todo mundo estava contra a ditadura
militar. Quando a censura acabou é que nós começamos a nos distinguir:
direitistas boa gente, esquerdistas de vários matizes, comunistas, liberais,
ressentidos, patrões e empregados e vai por aí.
-
Rita
tira o maço da bolsa, mas se decepciona: maço vazio. Olha para o garoto e
pergunta se tem cigarros no quiosque. O garoto informa que só a varejo. Ela
compra dois, paga com moedinhas que vão aparecendo no fundo da bolsa. Nesse
momento, sente um pouco de pena.
Talvez
ela não seja tão petulante, a palavra petulante tinha sido pronunciada pelo
subchefe de reportagem que, com certeza, não tivera a mínima paciência. Faz
um esforço; sabe que a sensibilidade que aflora de repente é só uma
resposta ao efeito da bebida.
Rita tem
dificuldade em acender o cigarro. Ajuda. Vai com as mãos em concha e, por
um breve instante, os dois se tocam.
- - Então?
-
Então nada, terminei o discurso.
- Se
eu entendi, os censores foram embora, mas na sua opinião as coisas não
melhoraram nada!
Fica de repente arrependido de ter iniciado aquela conversa. Até porque
Rita retomou o arzinho “petulante” e com certeza vai querer contestar tudo
o que ele disser. Mas é um assunto que já discutiu muito. Então, basta
repetir os argumentos de outras conversas.
-
Acho que a tecnologia aumentou os custos e fez com que os veículos, dos
maiores e até os de porte médio, acabassem prisioneiros dos grandes
anunciantes, o governo, as transnacionais... Isso criou, na minha opinião,
uma forma muito mais sutil e perniciosa de controle sobre corações e
mentes. Que se institucionalizou e, é invisível para o leitor,
telespectador, ouvinte, com um nível médio ou pequeno de informação.
-
Isso não é um pouco de paranoia?
- -
Talvez, mas o telespectador, o leitor, o ouvinte com um nível baixo de
informação, não entende noventa por cento do que é mostrado nos jornais da
noite na TV, não lê jornal, a não ser eventualmente e com dificuldade. A
maioria se limita às páginas de polícia, futebol, notícias sobre novelas...
Assim, ele nem percebe que está sendo enganado e que o que a mídia veicula
é o que interessa aos anunciantes. Sei que essa é uma opinião que pode
parecer estranha, mas...
Rita ficou
pensativa por alguns instantes. Estava tentada a concordar, mas seu
interlocutor, a barba crescida, o paletó amassado, a gravata vagabunda,
velha, não é o protótipo de alguém que tenha coisas sérias a dizer. Mas ele
insiste.
- O
problema é que hoje as limitações do jornalismo não dependem mais de um
censor idiota com primeiro grau incompleto, inseguro, querendo
desesperadamente subir na vida e por isso mesmo muito perigoso. Hoje essas
limitações são impostas por um editor educado, culto, sutil, perfeitamente
antenado com a linha do jornal, que sabe a maneira, abre aspas, correta,
fecha aspas, de como a notícia deve sair, seu formato, quem deve ser
entrevistado, e quem não deve, o que vai no lead da matéria e, o que deve
ser sutilmente omitido.
- Olha,
desculpe, mas eu acho que você está exagerando um pouco.
Ligeira
irritação na resposta. Ele sorri. É, talvez esteja exagerando um pouco. Mas
insiste, porque agora está se divertindo.
- Veja,
em noventa por cento dos casos o repórter já sai da redação com uma pauta
feita. E a pauta que já dá as dicas como, por exemplo, quem deve ser
entrevistado. Muitas vezes o repórter recebe sugestões de perguntas que
devem ser feitas... Isso já deve, inclusive, ter acontecido com você. E vai
por aí...
Mas perde o
pique. Ouve o barulho do vento que começa a levantar a areia fina. O garoto
do quiosque que estivera prestando atenção, sem entender, vira o rosto.
Parada para mais um gole. Pede uma cachaça. Nuvens brancas e esparsas passando
por sobre um azul de verdade. Sente que a depressão pode vir a ser a sombra
negra, grudada nele pelo sol da manhã. De repente, perdeu a vontade de
continuar falando.
Duas
horas mais tarde, já a caminho do jornal, Rita aceitou tomar um conhaque
com ele. Ainda estava branca e suava frio, depois do quase desmaio. No
restaurante à beira da estrada, ao lado do posto onde o carro estava sendo
abastecido, a repórter tinha dito que o cheiro e não a visão do cadáver inchado
provocara nela aquela “surpreendente queda de pressão.”
O Plantonista
Armando Silva era o plantonista noturno. Chegava as dez,
passava a noite empunhando o telefone, correndo atrás de crimes hediondos,
acidentes de trânsito com morte, incêndios, fuga de presos, deslizamentos
de terra com gente soterrada & afins.
E, com sorte ou azar - não ligava muito - às sete da manhã estava
caminhando pelas ruas do centro do Rio, de volta pra casa - Armando morava
sozinho num quitinete na Lapa - “a caminho do sono dos injustos”, segundo
definição dele próprio.
Sono que durava até duas da tarde, quando o repórter ia às
compras, dava um jeito na casa, preparava o jantar e via um pouco de TV:
somente o noticiário policial, “por razões de ofício”. Então, tomava um
banho frio e se preparava para estar as dez em ponto na redação, àquela
altura já quase vazia.
O repórter novo na casa, “um merdinha”, segundo o experiente Silva, que
toda noite esperava ansioso a rendição, nem olhava pra ele. Dava um “até
amanhã, chefia” para o editor - naquele momento acabando de fechar as duas
páginas policiais - e corria para o elevador. “Um merdinha”.
Nem sempre as coisas “corriam bem” no dia a dia do plantonista,
entendendo-se por “correr bem” conseguir que uma de suas matérias chegasse
às páginas do jornal, se possível assinada. O que seria um aborto, num
jornal que fazia questão de esconder seus talentos, segundo a sua
opinião..
Em 12 anos emplacara o nome apenas uma vez - em conjunto com mais três
repórteres e dois fotógrafos - na queda de um avião de porte médio no
interior do Rio. Ele contribuíra passando a noite no necrotério,
entrevistando parentes que chegavam para identificar as vítimas.
Um crime envolvendo gente de grana num apartamento chique da zona sul, um
incêndio de grandes proporções em Resende, o velho artista da TV
estrangulado pelo pivete que frequentava seu apartamento, a prostituta jogada
do décimo andar, caindo em cima de um táxi na Avenida Copacabana eram
matérias nas quais seu nome deveria estar, mas... Silva tinha sempre a
sensação de que era boicotado. O plantonista não tinha amigos, era odiado
pelos companheiros de editoria e tido como mau caráter por boa parte de
redação.
Silva era dono de um mau humor perpetuado - a culpa era de seus textos
fracos, segundo o editor de polícia - porque não lhe davam uma chance de
trabalhar durante o dia ou mesmo de sair da área policial para, por
exemplo, fazer matérias sobre cidade, esportes, política... O plantonista
confidenciava a seus “inimigos mais íntimos” que para ele não havia
problemas, “no jornalismo era capaz de jogar nas onze”.
Seu mau humor, às vezes, ultrapassava as paredes de pé direito alto da
redação. E volta e meia acabava envolvido em altercações com policiais,
testemunhas e até vítimas, durante as reportagens. Nas discussões que se
seguiam, os homens da lei geralmente preferiam baixar a bola, porque o
jornal em que Silva trabalhava tinha peso.
Um telefonema, dado pelo diretor de redação ao chefe de polícia do Rio,
podia significar uma longa passagem do inspetor, ou mesmo do detetive em
questão, por terras do agradável município de Sapucaia. Ou qualquer outro
buraco distante do Rio, onde a grana deixada pelo jogo do bicho – envelopes
fechados na mesa do delegado titular toda semana – não chegava nunca.
Silva sonhava com grandes matérias, mas quase sempre terminava a noite com
duas ou três laudas, cheias de correções feitas com a caneta Bic, sobre
crimes de morte perpetrados pelos chamados “pé inchado”: desempregados,
biscateiros, operários sem qualificação, faxineiras, ladrões de botijões de
gás, cafetões, prostitutas, pequenos traficantes, geralmente, envolvidos em
rixas que acabavam em homicídios na subida das favelas do Rio.
Nos dias de chuva, quando a quantidade de cachaça ingerida nas barraquinhas
aumentava, Armando Silva tinha mais trabalho. Os textos chegavam via
telefone, passados por setoristas baseados nos hospitais públicos e no
Instituto Médico Legal: um monte de imbecis, analfabetos, segundo o
plantonista, sabedor de antemão que o material ia direto para o lixo.
Ou para o “Polícia em poucas linhas”, uma coluna, quatro ou cinco
subtítulos em negrito. Era o máximo que podia conseguir, nos dias em que
nada ou pouca coisa acontecia na cidade.
No trabalho de varredura da cidade, o plantonista usava uma
prancheta com o telefone de todas as delegacias do Rio e um espaço em
branco onde deveria aparecer escrito o nome do delegado de plantão.
O que nem sempre era fácil “por causa da porra da má vontade de quem
atendia ao telefone nas delegacias”. O repórter fazia uma primeira busca e
quando seu faro indicava que a matéria “podia render”, saía em busca de
motorista e fotógrafo de plantão, quase sempre os mesmos naquela hora.
Exceto aos domingos, quando alguém que não conhecia muito bem a cidade era
escalado e irritava Silva.
O plantonista se sentia bem no banco detrás da Rural de duas cores,
percorrendo, noite alta, as ruas desertas dos subúrbios do Rio: Penha,
Méier, Honório Gurgel, Paciência, Austin, saltando nos “locais” onde a
polícia militar abria, rápido, caminho para a imprensa.
A sensação, porém, mudava quando chegavam depois da concorrência. Zé
Grande, o repórter de O Dia, era bem informado e gostava de se divertir
deixando Silva no sal, mas o plantonista confidenciava a seus inimigos
íntimos que “estava sempre de olho no filho da puta”. E quase nunca o
jornal em que ele trabalhava tomava um furo.
Em
geral, seus textos, “apurados com todo o cuidado”, não iam para as páginas.
Isso porque, quando o plantonista tirava a lauda datilografada da
Remington, a edição estava fechada há algumas horas. Muitas bancas já
funcionavam e os garotos que trabalhavam na madrugada tinham acabado de
vender os exemplares que apanhavam na porta do jornal. Assim, a quase
totalidade das matérias produzidas por ele estava destinada à lixeira mais
próxima da editoria de Polícia.
A grande
chance do plantonista começou a aparecer quando o general presidente, “uma
boa pessoa”, segundo sua avaliação, vinha passar o fim de semana no Rio.
Por via das dúvidas, o editor de política pedia um repórter para a
cobertura da chegada do presidente ao aeroporto do Galeão. Uma chegada
discreta sexta-feira à noite, quase em segredo, os jornais tomando pressão
da ditadura por “questões de segurança nacional”.
Silva sempre se informava com o pessoal da política sobre a possível
vinda do general para o Rio. Uma ansiedade que o deixava mais mal-humorado
ainda. Nilza, uma “mulher da vida, aposentada”, nas palavras do
plantonista, que passava, de vez em quando, na sua quitinete para “um piço
rápido”, é que levava a pior. Às vezes, a coisa nem começava. Silva batendo
a porta na cara da mulher de coração de batom desenhado, cuidadosamente, em
torno dos lábios.
O
plantonista tira do guarda-roupa o terno mais novo, veste, calça os sapatos
de cromo alemão, gravata comprada numa loja em Botafogo. Desce os quatro
andares do prédio a passos rápidos e, na rua, resolve tomar um táxi, “para
não chegar suado na redação”.
As onze
em ponto está atazanando o velho Nepomuceno, motorista mais antigo do
jornal, para que “acelere essa porra que o presidente não vai esperar”.
Quando salta na entrada do Galeão, já se sente o repórter
reconhecido pelo general. Que estende a mão, “boa noite” para o repórter
chato, que conseguia --depois de horas de conversa-- que a segurança
permitisse a aproximação.
Silva percebe, de cara, que há polícia demais no aeroporto. Nota um
grupo de fuzileiros navais com cassetetes de madeira. Então, procura os
seguranças do presidente que conhece - “só oficiais do exército, gente de
boa índole” - não encontra nenhum deles. Mas o presidente já o conhecia e
isso é que importa. Sabe, pela movimentação, que o avião já está pousado.
Quando o presidente passa pela porta de blindex, Silva dribla a
segurança.
Dá
três passos, antes de ser alcançado pelo cassetete de madeira e cair em
convulsões, enquanto o general tem seu trajeto um pouco desviado, para que
não precise presenciar a cena: um homem caído, ensanguentado no saguão do
aeroporto Santos Dumont. Alguém responde que o homem teve uma convulsão e
caiu.
O
fotógrafo Giles Serra que acompanhava Silva teve a máquina quebrada e levou
dez pontos no supercílio e cinco no braço esquerdo.
Armando Silva morreu dois dias depois, vítima de um infarto do
miocárdio, segundo o IML.
Na Redação
- E como é que isso vai ser resolvido?
A
pergunta é direta; o novo chefe da reportagem tinha chegado há poucos dias
de Brasília. Havia certo desconforto porque Almino Vaz, veterano e
experiente repórter, que estava de volta ao jornal, tinha a torcida dos
colegas para ficar no cargo. Até porque, informalmente, já tinha assumido
desde que seu antecessor, Rubens Otávio Lins, vítima de um câncer, estava
definitivamente afastado.
Na
última hora, porém, a direção da casa tinha resolvido deslocar o chefe da
sucursal de Brasília para a chefia da reportagem no Rio. As versões mais
correntes davam conta de que Ribeiro Bastos tinha se incompatibilizado com
a Casa Civil da presidência.
-
Alguém tem uma solução?
Impaciência após menos de um minuto entre a primeira e a segunda
pergunta. Vaz, que teoricamente estava passando o bastão, parecia curioso.
-
Talvez porque a rapaziada não esteja entendendo muito bem a ênfase que está
sendo dada a esse caso. No passado nós mandávamos um repórter cobrir a
greve, matéria de duas colunas, que só crescia se houvesse pancadaria,
polícia. Essa não é a primeira greve de serventuários da Justiça.
Ribeiro Bastos evitou olhar para o velho repórter.
- Comigo as coisas serão diferentes. Na minha opinião o jornal deve
ter uma posição clara nesses casos. Estou pensando nas pessoas que têm
processos em andamento, com datas, pessoas que estão dependendo de uma
decisão do Tribunal...
O novo chefe da
reportagem vinha de baixo, estava há mais de 20 anos no jornal, concluindo
uma carreira que começara no laboratório de fotografia e, curiosamente,
tinha desaguado na redação. Já fotógrafo, segundo boatos que agora corriam,
avançara um pouco mais ao fazer pequenos textos em matérias nas quais a
direção da sucursal não via a necessidade da presença de um repórter. Isso
lá pelos anos sessenta.
Mais tarde, uma série de bem sucedidas matérias sobre obras
realizadas nos governos militares, garantiu a Ribeiro Bastos o respeito e
até a amizade dos coronéis, generais e civis que vicejavam no entorno do
centro do poder. Com isso Bastos conseguiu abrir portas importantes durante
os anos de ditadura. O jornal, graças à presença do repórter e mais tarde
chefe da sucursal, já era o mais bem informado no final daqueles anos.
O chefe da reportagem também tinha ganho
prestígio por sua habilidade em lidar com as tentativas de plantar notícias
feitas por gente que fingia proximidade, mas estava fora do núcleo central.
Tinha aprendido a distinguir, mesmo entre os mais próximos dos
generais-presidentes, quem agia nos bastidores para colocar pedras no
caminho do governo. Essa lealdade feroz ao círculo de confiança fazia com
que o jornal navegasse em águas tranquilas, mesmo quando a censura, no Rio,
criava problemas.
Seu
prestígio entrou naturalmente em queda no governo Sarney, quando Bastos
sentiu-se, apesar do peso do jornal, tratado como qualquer jornalista
encarregado da cobertura do Planalto e adjacências. Mais do que isso,
repórteres que vinham acompanhando de perto as novas estrelas da
constelação do poder, como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, o próprio
Sarney e dezenas de outros nomes da chamada Nova República, de repente
atropelaram seu prestígio.
E havia ressentimentos. O
chefe da sucursal exibia durante a ditadura - exceção feita para um breve
período no governo Médici, quando brigou com um coronel - uma arrogância
que o afastava de gente do mesmo nível trabalhando na concorrência. Gente
que agora tinha a preferências nas inconfidências, informações em off e
vazamentos propositais no novo governo civil.
O
troco foi sentido pelos donos do jornal. Para contornar uma situação, sem
defenestrar quem até ali tinha servido tão bem aos interesses da casa, dois
repórteres de prestígio, antenados com a nova cara do governo, foram
contratados. A peso de ouro, segundo comentários feitos em voz baixa na
redação. Ribeiro Bastos permaneceu chefe, mas foi chamado para uma conversa
e as novas estrelas passaram a discutir a pauta, todos os dias pelo
telefone, com o diretor de jornalismo, no Rio.
Na
redação também corria o boato de que Ribeiro Bastos não tinha concluído o
segundo grau. Apesar disso ninguém contestava que seu texto era impecável:
correto, limpo, claro. Ninguém discutia sua perspicácia na sucursal
Brasília durante a ditadura, mas agora, trazido de volta para o Rio, depois
de andar às turras com seus comandados, suas limitações começavam a virar
folclore. Bastos queria implantar seu estilo logo de cara. Ali, na reunião
convocada mais ou menos às pressas, estava tentando mostrar como acreditava
que as coisas deveriam acontecer com ele na chefia.
-
Quero três repórteres. Um vai entrevistar alguns serventuários da Justiça
que trabalham na Corregedoria. São funcionários também, mas dificilmente
fazem greve. Muitos estão em cargos comissionados. O outro vai ao prédio do
Tribunal. Lá dentro deve haver juízes que acham que o governo estadual pode
não estar agindo com o rigor necessário nesse caso e, com certeza vão
falar. Isso interessa; vamos ouvir a opinião dessa gente. Quero o terceiro
repórter na porta do Fórum ouvindo os grevistas. Quando ele chegar com a
matéria eu quero ver. Vamos escolher as entrevistas e contrabalançar com o
resto do material.
O chefe da reportagem olhava pela janela. Duas barcas estavam se
cruzando no meio da baia.
-
- Quem é que
vai? E você, Almino, tem mais alguma sugestão?
As
perguntas não faziam muito sentido para a plateia formada pelo chefe
interino e três repórteres convocados. Ninguém ali entendia muito o porquê
da gravidade naquela reunião convocada as pressas. Os três já tinham recebido
suas pautas do dia e não sabiam muito bem o que fazer com elas.
Bastos volta a encarar a plateia. Explica que a posição jornal é
contrária a essa greve e outras, que prejudiquem o contribuinte. Mas no
caso particular da Justiça a coisa é mais grave.
- Não se trata de mais uma greve. A direção entende que a greve é
antipática, que prejudica mais as pessoas de poucos recursos. É preciso que
fique bem claro que o jornal tem uma posição definida nesse caso. É tudo!
Já na redação, Almino Vaz tentou amenizar as coisas, descartando
qualquer comentário sobre o que tinham ouvido.
- Você,
Lineu que é um garoto esperto, vai ouvir os juízes.
-
- Tudo bem,
mas será que o Bastos pode dar a dica dos interlocutores que interessam?
-
- O
Bastos, acabou de chegar de Brasília, não conhece ninguém no Poder
Judiciário do Rio. E nem eu. Então vamos, por tentativa, ouvir quem fale o
que interessa. Vamos ouvir uns quatro ou cinco juízes... e equilibrar a
matéria. Eu mesmo quero ver as entrevistas. O homem está desacostumado com
o Rio.
- Acho que ele está desacostumado com o jornalismo. - Lúcio quer
saber o que faz com a pauta iniciada.
- Passa essa bola pro
Guilherme.
- Mas o Guilherme não vai falar com os desembargadores?
- Também.
Braga
A
duração, pouco mais do que o tempo de um flash. No primeiro momento, o
encontro dos olhos: os seus com os do homem sem camisa, emoldurado de
repente pela porta aberta. Olhos muito arregalados por trás dos óculos de
aros grossos. Sangue abundante no peito e no canto da boca. Braços
imobilizados por alguém que o mantinha de joelhos. Reconheceu na hora. Num
segundo instante, em outra porta, outros olhos viram o que ele tinha visto.
Olhos que se desviaram rápido.
Respirou fundo e quando percebeu já estava no pátio da delegacia,
uma velha casa de subúrbio adaptada. Nos fundos, a construção nova com
quatro celas. De onde estava podia ver dois presos de bermuda sentados em
colchões, ouvindo rádio, volume alto.
Na velha
casa, a porta de entrada, estreita, três degraus separavam a ante-sala da
calçada. O escrivão, por trás da velhíssima Remington, datilografava um pedido de material, alheio a duas
mulheres que pretendiam dar queixa do irmão bêbado.
Os
quartos tinham sido transformados em sala do delegado, setor de vigilância,
de averiguações, um espaço para o lazer – mesa de sinuca, mesa de totó –
que ninguém é de ferro. Ao lado da cozinha, discreto, sem janelas, o lugar
onde o repórter Hercílio Lopes, naquele momento, estava sendo torturado.
Entre a
casa e a nova construção nos fundos, o piso era de cimento, rachado em
muitos pontos, com buracos em outros. Bem no meio do pátio a enorme
mangueira, cujos frutos estavam sendo apedrejados naquele instante por um
inspetor e um alcagüete - que com o tempo estava se tornando policial,
saindo para fazer prisões no velho camburão da DP da Penha Circular.
As mangas
custavam a cair e as pedras estavam batendo no telhado da casa vizinha. O
delegado, braços abertos, apareceu de repente na porta dos fundos da velha
casa, impediu a tentativa da derrubada das mangas verdes e chamou por ele.
-
Não é preciso dizer que você conhece o cara!
Respondeu que sim com um gesto de cabeça.
- Então? O que
acontece agora?
-
Não sei; tô pouco ligando - respondeu.
A
resposta, um lapso de uma coragem que desconhecia.
-
Vamos pra minha sala.
Seguiu o delegado. Antes que a porta fosse fechada, sentou na
cadeira em frente à mesa. Braga era um velho conhecido, ansioso para aparecer
nos jornais, que telefonava para a redação sempre que, segundo sua
avaliação, havia alguma coisa que pudesse virar matéria nas páginas
policiais.
Em noventa por cento dos casos o telefone era passado para o
repórter de plantão que anotava os dados e a notinha saía, em uma coluna,
substituindo um atropelamento na Presidente Vargas ou um homicídio na
subida do Borel. Às vezes, mais para não perder o informante qualificado,
uma equipe ia até a Penha Circular, onde o delegado se mantinha fazia
tempo.
-
Olha, a gente aqui não tem nada com isso. Parece que o cara morava aqui
perto, ou o aparelho dele era por aqui, não sei muito bem... Esse pessoal
diz que é do Dops, chegou com ele num chapa fria e pediu pra usar a sala...
-
Sei.
Braga baixou os
olhos, tentou abrir a gaveta emperrada, desistiu, com um “porra, tem que
chamar um carpinteiro” e tornou a olhar para ele.
-
Como é que vai ser?
- Você não devia ter deixado
essa gente entrar aqui.
-
Porra, você deve tá ficando maluco! Fazer o quê, porra! Depois, eles
disseram que vão enfiar um porte de arma e deixar o puto aqui mesmo. Solto.
A gente esquece o que aconteceu e tudo certo.
-
Desculpe, Braga, mas eu não posso aceitar que você está acreditando nisso.
Os caras...
- E
eles também sabem que você é repórter. Foi o Leo, o X-9 que contou... pra
puxar o saco dos caras! Ele falou, “olha que tem jornalista aí...”
-
Me dá um tempo, um minuto.
Saiu pela porta lateral contornou a casa, em direção ao portão.
Passou meio abaixado ao lado do camburão estacionado ali há meses, o motor
batido depois de uma tentativa de alcançar um Simca Chambord, com dois
traficantes, na Avenida Brasil. Tinha feito a matéria, o Simca bateu de
frente com um ônibus da Companhia de Transportes Coletivos: dois
traficantes mortos.
Passou pelo portão; a rural
estava a uns dez passos, duas rodas na calçada. Abriu a porta do carona. O
fotógrafo e o motorista saíam do bar no instante em que alguém estava
atendendo um chamado na freqüência do jornal. Os dois não tinham pressa.
Esperou, pacientemente, que chegassem.
Explicou rapidamente o que estava acontecendo, virou as costas. Segundos
depois ouviu o barulho das rodas da Rural passando da calçada para a rua de
paralelos, voltou andando rápido pelo mesmo trajeto.
Braga tinha conseguido abrir a gaveta.
-
Você fez o certo – respondeu depois
de ouvir que a Rural estava a caminho da redação com um recado dele. Os
olhos do delegado agora examinavam um par de lápis, pretos, novos, sem
ponta. Remexeu em alguns papéis, colocados
um a um no tampo da mesa, uns óculos de aros finíssimos, uma almofada de
carimbo, dois envelopes empoeirados.
-
Toma.
Teve que levantar da cadeira e percebeu que estava sentindo frio,
apesar da temperatura de quase quarenta graus ali na Penha Circular. Os
dois envelopes, com seu nome escrito errado.
-
Que é isso?
- Dinheiro, porra!
-
...?
- Propina, caralho, sabe o
que é propina! A rapaziada, seus coleguinhas, porra, tem gente que vem
buscar toda semana! É dinheiro do bicho, a gente racha; você tá por fora,
acho que ninguém te avisou. Agora põe essa merda no bolso pelo amor de
Deus!
Gesto automático, a frase não admitia hesitações.
-
Vou falar rápido! Eu disse aos caras que você era da casa, de confiança,
entendeu? De rabo preso, entendeu? Se te segurarem vão ver os envelopes!
Isso pode livrar a tua cara! Depois, já que você é metido a bom moço, joga
essa merda no lixo! Ou dá pra algum mendigo!
Ficaram ali, em silêncio, até que Braga começou a falar na prisão do
assaltante que provocou a ida até a delegacia naquela noite. “Queria café?”
“Claro.”
- Sobre o cara que a gente prendeu, esse que vocês fotografaram...
eu esqueci de dizer que ele teve participação naquele assalto em Campo Grande, mês passado.
Ele, o Olívia Palito, um tal de Sérvulo, que tá foragido, o Bira, que
morreu mês passado e um tal de Bodão. Esse Bodão tinha treze homicídios! Já
pensou? Treze homicídios aos dezenove anos!
- Tá morto. Eu...
- Eu sei que tá morto.
- ... tinha feito matéria com ele no ano passado. O pessoal da DP de
Madureira pediu pra eu identificar o corpo. Por causa daquela matéria.
- Foi na Dutra, não é isso?
- O corpo estava dentro de um saco plástico do lado da linha do trem
em Madureira, a uns duzentos metros da passarela.
- Sei, mas mataram ele na Dutra.
- Não sei, a gente não deu continuidade.
- Foi, foi na Dutra, ele foi
morto por um tal de Ratão, lembra do Ratão?
- Não tenho a menor idéia. O jornal não tem espaço pra bandido
pé-de-chinelo.
- Não era pé-de-chinelo não! - O dedo fazendo sinais frenéticos,
Braga quase se levantando da cadeira. - Não era pé-de-chinelo não! Mexia
com maconha, dava proteção a ponto de bicho, deu um tiro num PM! A gente
quase segurou ele...
De repente absorto, olhando através dele para o pátio com a
mangueira.
- O Valter, se lembra dele? Deu mole, ficou com medo, o cara ali no
bar, aquele um pouco antes da esquina... No que chegou aqui pra avisar, o
cara se mandou. De moto.
Tempo
passando, começou ver que o delegado
estava ficando ainda mais nervoso, tentando abrir e fechar a gaveta,
torcendo as mãos. Estava nervoso também?
Tinha se acalmado quando um detetive entrou na sala e cochichou alguma
coisa. Braga levantou rápido.
Enquanto esperava, ficou imaginando a Rural sendo estacionada no
pátio, o fotógrafo subindo pela escada, dois, três degraus de cada vez,
abrindo a porta da redação, identificando quem mandava mais naquele
momento, contando o que tinha acontecido, o pessoal se levantando, se
aproximando, alguém indo direto para o telefone, ligar para o dono do
jornal.
“Ainda não”. A imagem da Rural percorrendo a Rua São Luiz Gonzaga,
ou fazendo um trajeto alternativo, já a caminho da Avenida Brasil, pareceu
mais provável.
Braga voltou depois dele ter examinado os envelopes. Tinha um bom
dinheiro ali dentro. Cada um com pelo menos um salário.
-
Os caras se mandaram – o rosto parecia acinzentado – mas eu tive que dar o
teu nome.
Ficaram ali durante a eternidade
de um ou dois minutos, Braga espiando a mangueira, ele olhando o piso da
sala, muitos tacos soltos. Naquele momento pensou em tropeções e praga. O
próprio Braga devia tropeçar muito por ali.
- Não teve jeito, ia
fazer o quê?
-
Sei, não teve jeito.
-
Mas olha, com o peso do teu jornal...
-
Acho que nem você acredita nisso, Braga.
- Olha aqui, se você está
preocupado... eu mando o Jorge te levar no camburão...até a porta do
jornal.
- Primeiro, eu acho que os caras não vão estar me cercando, né?
Depois, se resolverem me segurar, isso vai acontecer mais tarde; outro dia.
- É o melhor que eu posso fazer.
- Sei, eu tomo um táxi.
Chegada ao jornal, sem sobressaltos; pediu que o motorista passasse
antes pela porta, desse uma volta no quarteirão. Nenhum carro estranho,
nada de diferente. A Rural já devia estar de novo na rua. Zé Grande
correndo atrás de algum acidente, um encontro de cadáver na zona sul, ou
simplesmente zanzando pelo Largo do Machado com o carro do jornal, ou
passando na porta do puteiro da Rua Alice. Enquanto isso o estagiário – bem
avisado para entrar em contato com ele – checava delegacias, PM, bombeiros,
talvez meio apavorado com as recomendações do Zé.
Sentiu uma espécie de ternura, imaginado o repórter, mais de um
metro e oitenta, talvez sentado agora na lanchonete onde, segundo ele,
comia-se a melhor fatia de pizza da cidade.
Saiu do elevador, atravessou o corredor bem iluminado e silencioso,
reparando pela primeira vez que as paredes não terminavam num rodapé,
apenas mudavam de cor: o azul bem claro ficando muito escuro a dez
centímetros do chão. Abriu a porta de vaivém, entrou na redação.
O estagiário ao telefone, um contínuo lendo uma lauda desamassada.
Em pé, aparentemente pronto para sair, terno vestido, o jornal embaixo do
braço, o editor da página de polícia. Esperando por ele, é claro.
- Quem era o jornalista? Você
não deu o nome, o fotógrafo não sabia quem era!
- O Lopes, aquele que trabalhou aqui.
- O Caldas acha melhor você não ir
pra casa. Amanhã ele vai falar com alguém do Dops, pra ver como é
que as coisas ficam. Caldas, diretor de redação tinha sido avisado. Ele
mesmo reservou um quarto no Hotel Ipanema. Fica por lá e amanhã telefona.
Na manhã do dia
seguinte acordou meio porrado, a garrafa de vodca pela metade na mesinha de
cabeceira.
Barbacena
- Me dá um cigarro? Voz engrolada quase
inaudível, suplicante.
A
resposta, um safanão, meio tapa, meio soco desajeitado, joga o rapaz,
gemendo, no chão. Um gemido baixo, conformado, como se a agressão fosse
alguma coisa já esperada.
Talvez achasse que aquilo era só a sequencia normal de outros socos,
chutes e pauladas que, dois dias antes, tinham produzido ferimentos
abertos, sangrando nas canelas inchadas e um olho desaparecido no arroxeado
disforme do lado direito do rosto. Onde, um segundo antes, estivera pousada
a mosca azul-metálico. O “olha pra mim seu puto!” vem a seguir, antes que
consiga se interpor.
Um
passo e fica entre os dois, olhando dentro dos olhos do fotógrafo, a
respiração acelerada.
-
Vai fazer merda aqui dentro?
Nicácio baixa a rolleiflex e os dois ficam se encarando, olho no
olho, um ou dois infinitos segundos, até que o fotógrafo recue um passo e
aponte de novo a câmera para o que deve ser seu objetivo. Em silêncio.
-
Vai fotografar o cara nesse estado!? Então se segura, porra!
Rui Nicácio era bem mais velho. E tinha fama de não se segurar muito
bem em situações como aquela. Era a primeira vez que trabalhavam juntos,
mas havia antecedentes.
Deu
um refresco, olhou para fora da cela: corredor estreito, uma porta aberta,
a ponta da mesa do delegado. Ouviu vozes. Um sargento da polícia militar
mineira estava no comando naquela madrugada fria e aparentemente não dera
maior importância ao rápido bate-boca.
O
rapaz na cela da delegacia de Barbacena estava preso sob a acusação de ter
matado uma menina de dez anos, um crime que a polícia estava relacionando
com outros, dois cometidos em circunstâncias parecidas: estupros seguidos
de morte, as vítimas esfaqueadas inúmeras vezes. O encontro do corpo nu -
cortes profundos no rosto - agora no necrotério - tinha traumatizado de vez
a cidade onde tudo estava acontecendo.
Não tinham chegado a tempo de acompanhar a tentativa de invasão do
posto de saúde, para onde o rapaz tinha sido levado, depois que uma
guarnição da polícia civil de Belo Horizonte, que estava ali por acaso,
conseguira evitar o linchamento. A menina fora morta dois dias antes, por
volta das sete da manhã, num atalho que usava para chegar à escola. O
criminoso, segundo vizinhos que já desconfiavam do comportamento do rapaz,
tinha sido encontrado ainda com o sangue da vítima nas mãos, desmaiado, a
poucos metros do local.
Tinha ficado
mais ou menos impassível diante da choradeira da mãe que soubera, pela
rádio local, da presença de um jornalista do Rio na cidade. A mulher
caminhara duas horas até o centro de Barbacena, levando vidros e receitas
médicas, tentando dizer que o filho era doente, não sabia o que fazia,
“pelo amor de Deus, moço, não deixem que matem ele, podem até levar ele pro
manicômio, mas ele não sabe o que faz quando sente essa coisa. Mas ele
nunca ameaçou ninguém, nunca magoou ninguém, só fica assim estrebuchando,
depois cai em qualquer canto e custa muito tempo pra levantar”.
Agora, ali
naquela cela, ouvindo os repentinos gritos de outro preso com dores no
estômago, está um pouco arrependido de não ter ouvido com mais atenção as
palavras da mulher. E começa a achar que aquele rapaz de sandália havaiana
no pé esquerdo – a outra com certeza perdida no quase linchamento –
possivelmente é vítima do ódio cego, filho do medo dos moradores da cidade
abalada, de repente, por três mortes em série. Quem poderia saber se entre
os algozes do rapaz não estava o verdadeiro assassino?
Acha a frase
razoável para um romance policial, vê a mãe aflita espiando lá do fim do
corredor e pede ao policial que abra a cela. Nicácio guarda a câmera. A
mulher espera por eles, ainda com as receitas e os vidros de remédio. Faz
um sinal para que ela o acompanhe. Faz frio do lado de fora da delegacia e
se arrepende de ter deixado o paletó no banco de trás da Rural, estacionada
do outro lado da praça por recomendação da polícia, onde o motorista agora
dorme com os vidros fechados.
Nicácio
começa a tirar de novo a máquina de dentro da bolsa para bater outras fotos
da mulher. As primeiras, antes de entrarem na cela, tinham sido feitas com
visível má vontade.
Suspira um
pouco mais alto do que desejaria naquele silêncio de cidade do interior e
resolve andar até o bar, onde os últimos curiosos estão bebendo cachaça, à
espera de alguma novidade. A mãe do
preso fica para trás, muda, remédios e receitas inúteis. Para, faz um gesto
pedindo que ela se aproxime.
Começa a
perguntar, agora calmo, qual era a doença do rapaz. As respostas,
atropeladas, entrecortadas por apelos (ele é doente, moço, mas nunca fez
mal a ninguém, juro! passa muito mal, muito mal mesmo, quase morre, a gente
tem que puxar a língua dele pra fora senão fica todo roxo!) agora produzem
um efeito que ele acha indesejável pelo menos para quem deve se manter
distante desse tipo de emoção, com algumas doses de puro cinismo no bolso.
Mas nem sempre se consegue. Sente-se mais fraco ainda quando vê que a
mulher está com o outro pé da sandália e imagina um policial qualquer
impedindo que ela pudesse entregar para o filho preso.
A mulher
continua falando. Anota cada detalhe, resolve que vai passar cada detalhe
por telefone, para quem estiver de plantão na redação. E acha que talvez
fique na cidade para tentar saber mais alguma coisa sobre aquelas mortes e
o quase linchamento. Nesse momento, vê que porta do bar baixa, o barulho
rompendo a noite silenciosa.
Desperta, duas
ou três horas mais tarde, com o barulho das rodas do trem e descobre que o
quarto do hotel é um tipo de porão a pouco mais de um metro da linha de
trem. Um cargueiro, possivelmente com minério de ferro, passa vagaroso e
interminável, provocando um terremoto. O copo, deixado na ponta da mesinha
de cabeceira, cai no chão.
Levanta,
coloca o paletó. Está se sentindo sujo, mas o banheiro do hotel desencoraja
o banho. Sai. Na portaria, o vigia noturno, dorme na cadeira, o cobertor
por cima do corpo, só a cabeça de fora. Abre a porta e vê que Nicácio vem
atrás dele. Imagina que vai se aporrinhar. Mas o fotógrafo também sofre de
insônia e só quer mesmo era contar sua história.
Ex-jogador de
futebol, clubes do interior paulista, antes de se tornar fotógrafo, tinha
ralado um tempo no laboratório, revelando o trabalho dos outros e levando a
tira de cópias em 35 mm para que os editores pudessem escolher a que ia
para a página. Nessas incursões na redação, tinha feito amizade com o
pessoal do esporte – um ou outro repórter tinha ouvido falar na passagem
dele pelo São José dos Pinhais – e com esse aval conseguira uma chance,
primeiro fotografando treinos do meio de semana.
Mais tarde, já dominando o uso da grande
angular, passou a cobrir os jogos de fim de semana no gramado do Maracanã.
Mas uma discussão com o editor de esportes, da qual tinha se arrependido e
pedido desculpas, e fora remetido para o trabalho duro na editoria de
polícia. Mas não se importava, queria continuar fotografando o resto da
vida, se pudesse. A fama de encrenqueiro veio junto, “mas não era nada
disso”. Bateu no ombro dele e apontou o botequim do outro lado da rua. A
porta de aço de outro botequim estava sendo aberta pelo dono.
-
Vai
de café?
-
Não,
mas quero te avisar de uma coisa: vamos ficar por aqui hoje, talvez amanhã.
A lua,
cheia naquele amanhecer, iluminava o céu das Gerais.
O Menino Mágico
A brisa, mesmo quente, é um
alívio para o calor de mais de quarenta graus e mantém no alto a pipa,
vermelha, bambu, papel fino, em contraste com o céu azul, sem nuvens.
A temperatura alta da tarde
faz o suor escorrer do pescoço para o peito, marcando a camisa, enquanto
aceita o convite para sentar na sombra da mangueira enorme, único lugar
suportável sob o sol na zona rural de Magé. Abel, o dono do sítio, também
olha para o céu e a pipa.
- O garoto
era bom, um menino bom mesmo. Educado, respeitador dos mais velhos... Eu
não sei como que pode... se é que foi ele mesmo, que... até hoje, olha, não
tenho certeza, e meu coração fica apertado assim, quando eu penso nisso.
Os
olhos já são normalmente vermelhos. Olhos de quem trabalha duro na roça,
capinando mato, que cresce veloz, todo dia, mais ainda no verão, tirando a
força dos pés de mandioca e de inhame, que ele cuida “com a ajuda de dois
filhos e um meeiro”.
-
O senhor podia me contar exatamente o que aconteceu?
Naquele
momento os olhos estão ainda mais vermelhos. Ou seria só impressão?
-
Naquele dia, assim pela tardinha, o sol desaparecendo, ali atrás daquele
morro e de repente a casa do meu filho, Júlio, aquele ali...
Aponta
para o rapaz de camisa aberta que fuma, tranquilo, junto do que parece ser
um poço artesiano.
-
... a casa daquele meu filho Júlio ali começou a arder de fogo, do lado de
fora!
Madeira enegrecida em parte da janela e nos caibros que sustentavam
as telhas da varanda.
-
Tava todo mundo em casa, todo mundo correu com os baldes, as latas, o fogo
foi apagado. Então, começou o incêndio na minha casa. A gente toda que
tinha chegado, uns vizinhos, todo mundo ficou assustado, assustado sem
entender! Mas os baldes já estavam nas mãos e todo mundo correu, eu já
desconfiado que era coisa do menino...
-
Desconfiado como, seu Abel?
- Não
sei, alguma coisa que me bateu assim, alguma coisa que eu ouvi e não quis
saber, alguma coisa que eu, desculpe, nem sei explicar, uma coisa no
peito... Mas olhe que eu não disse nada a ninguém, guardei pra mim só.
- E o
menino, seu Abel? Como é que ele se portou nessa hora?
- O
menino Romualdo também correu logo pra ajudar. Pegou uma lata, correu pro
poço d´água, veio ajudar a apagar o incêndio!
-
Entendo...
-
Quando começamos a botar água na parede, meu filho Julio tinha conseguido
desenrolar a mangueira do poço, que a gente usa pra molhar o inhame e a
mandioca, foi que o fogo pegou na outra casa, aquela lá do meu outro filho,
o Júnior! Também pegou fogo! A gente não sabia pra onde correr, a minha
mulher que sofre dos nervos caiu ali mesmo perto do tanque. A gente ficou
mais de uma hora jogando água nas três casas. Com a minha não aconteceu
quase nada, mas a do meu filho Júlio tá imprestável. Pode ver! Qualquer
hora vai no chão. Vamos dar um tempo, pra comprar o material de construção
e ajeitar outra pra ele. Enquanto isso, ele, a mulher dele e as crianças
tão dormindo lá em casa mesmo”.
- E o garoto?
- O pessoal
começou a falar, a pegar no pé, que aquilo não se explicava, que, quem
sabe, o fogo podia voltar e uma coisa foi levando à outra e a minha mulher
também ficou com medo, embora ela gostasse muito mesmo do menino Romualdo.
Eu também fiquei triste, muito triste, mas levei o menino, dia seguinte de
volta, pro quartel dos bombeiros. A gente aqui em casa já tava sabendo das
histórias de antes... tava sabendo, eu disse pra mulher, quando ela começou
a pegar muito no meu pé. A gente tava sabendo, mas não acreditava muito.
Que tinha acontecido coisa estranha nas casas onde o menino tinha ficado.
Eu acreditava, mas não acreditava e o menino era bom, educado. Mas não teve
jeito mesmo, levei ele pro bombeiro.
Há tempos, Jack
tinha aprendido a não compartilhar o sentimento de quem entrevistava. Tinha
aprendido a não se importar, a tentar não sentir nada diante de choros,
súplicas, reclamos de inocência. O plantador de mandioca tinha ficado mesmo
triste, ou estava apenas simulando?
- Eu tive
pena, muita pena, porque ele era um menino bom, um menino bom mesmo. Estava
se acostumando com a gente, brincava com os netos, corria pelo sítio com os
cachorros. E era educado, descia lá do morro, pra pedir se podia comer
goiaba, quando chegava lá, de volta, o resto da molecada já tinha acabado
com tudo.
- Disseram
que dali ele foi pra um quartel do exército, no Rio. O senhor tem essa informação?
- O
bombeiro, que mora aqui perto, falou que os soldados vieram buscar ele num
jipe.
- Esse
bombeiro não sabe pra que quartel o garoto foi levado?
- Só perguntando a ele.
- O
senhor, por acaso tem uma foto do menino?
- Acho
que tá lá no armário, escondida... Se é que minha mulher não achou e deu um
fim. Ela gostava muito do menino, mas então ficou com tanto medo que cismou
até de queimar a roupa que ele andou usando pra ir à igreja, quando morava
aqui com a gente. Roupa nova que eu tinha comprado e podia servir pros
netos. Mas ela não queria saber, queimou tudo, lá no meio do mato e ainda
enterrou as cinzas. O pastor dela, que eu sou da igreja católica, também
achou que não era bom descuidar, que o menino podia ter parte com o demo,
mas eu não acredito nisso.
Abel
levanta, ágil, do banco tosco e vai, ligeiramente manco, em direção aos
fundos da casa.
Tinham
custado a achar o sítio, rodando pela área rural de Magé, maltratando o Gol
seminovo em ruas de saibro, esburacadas, que se transformavam em picadas de
burro, abrindo cancelas, perguntando aqui e ali, na porta dos botecos, nas
igrejas de crentes, até encontrar alguém que sabia onde seu Abel Rodrigues
e a família moravam.
A
história do menino, capaz de proezas estranhas como incendiar três casas ao
mesmo tempo, tinha chegado à redação através do correspondente do jornal em
Magé, Joaquim Terroso.
Terroso era arrogante e gostava de se vangloriar de ter sido “o
primeiro repórter” a comunicar a queda de um avião, muitos anos atrás, que
já passara “pelo espaço aéreo da cidade com uma das turbinas pegando fogo”.
A redação tinha sido comunicada por ele minutos depois, mas como ninguém
dava importância a setorista, o aviso foi esquecido até que minutos mais
tarde um avião de carga caiu na baía de Guanabara. Naquela noite, Joaquim
Terroso fez de táxi o trajeto entre Magé e o centro do Rio, para levar duas
laudas de texto com o depoimento pessoal e um filme, meio velado, com a
foto do que seria o avião pegando fogo em pleno voo “sobre o espaço aéreo
de Magé”. As duas laudas se transformaram em dez linhas legíveis de um
texto impessoal, mas seu nome apareceu na relação dos repórteres que
cobriram o acidente.
Terroso
tinha sumido com um dos filhos e alguns netos do agricultor no caminho que
levava à parte de cima do sítio, o que era um alívio, já que sua
arrogância, sua maneira de se dirigir a pessoas mais simples como Abel, já
tinha provocado um atrito entre os dois, um ou dois meses antes. Mas a
história, desdenhada pela chefia de reportagem, e que ele tivera a
paciência de ouvir, num longo telefonema na sexta-feira à noite, quando já
estava de saída, podia render alguma coisa.
Pelo menos, essa era a sua avaliação naquele momento.
Abel
volta minutos depois, com a foto no bolso e um dedo sobre os lábios,
indicando que ele deveria ficar calado. Atrás dele, a mulher vem com dois
cafezinhos em canecas de lata. Agradece, espera que a mulher limpe a mão no
avental antes de apertar a que ele tinha estendido, “tudo bem com a
senhora?” Toma o café, olhando uma segunda pipa que se aproxima para o
combate, as linhas certamente com cerol.
Quando a mulher
desaparece na porta dos fundos da casa, Abel tira a foto do bolso e aponta
para o menino Romualdo, negro, entre outro menino, branco, e uma
adolescente.
- Os
dois são filhos do comerciante que tinha hospedado o menino antes dele vir
pra cá. Ficou com ele, até o dia em que algumas coisas da loja, material de
limpeza, uns plásticos, umas coleiras de cachorro, segundo ele contou,
começaram a sair das prateleiras e, voando, voando mesmo, foram bater na
porta de madeira que dava pra casa, nos fundos, onde ele e a família dele
estavam vendo televisão.
O
menino Romualdo, Abel conclui, era mesmo muito bom, coitado, porque depois
desse dia, outra pessoa tinha resolvido dar abrigo a ele. De novo tudo
tinha corrido bem, durante uma semana, até que, em plena tarde de sol, umas
panelas começaram a chacoalhar na cozinha. A dona da casa, que vivia com a
filha que trabalhava no bar do outro lado da rua, ficou apavorada. Alguém
chamou os bombeiros, mas quando a guarnição chegou estava tudo em silêncio,
as panelas no lugar.
O
menino Romualdo tinha ido parar no quartel dos bombeiros. Passara um mês
por lá, brincando, usando os bonés e ganhando roupa usada dos bombeiros que
tinham filhos do tamanho dele. Comia no refeitório, tomava conta de dois ou
três cachorros que também moravam por ali, passava os fins de semana na
casa do comandante. Bom, quando as férias escolares terminaram, o juiz aqui
da comarca mandou que o garoto fosse matriculado numa escola pública do
município.
- Aí
o comandante dos bombeiros também mudou de quartel e o novo, que ficou no
lugar dele, não quis saber do garoto. Então, esse rapaz que mora aqui perto
perguntou se eu não podia ficar com ele, que tinha espaço e criançada na
minha casa. Eu pensei comigo que minha mulher não ia querer, mas ela quis.
Fomos buscar o menino no carro do meu cunhado. Ele chegou meio triste, que
gostava de brincar lá no quartel, mas se acostumou logo com a gente daqui.
Abel respira fundo. Está
calmo, pergunta se ele quer outro cafezinho e conta que ele e os quatro
filhos tinham comprado “o direito do sítio” há mais de dez anos, quando
decidiram deixar Cataguazes, Minas Gerais, mas “pertinho daqui do Rio”,
para morar em Magé, o lugar mais próximo do sonho que o dinheiro ganho com
as plantações de legumes permitiu que chegassem. Dois dos filhos já tinham
voltado, não para Cataguazes, mas para Belo Horizonte.
Tudo ali era simples como a sandália havaiana, e camiseta rota com
que tinha sido recebido. Abel viu que ele suava e disse que ia pedir que a
mulher fizesse “um suco de melancia passado no pano”. Disse que não era
necessário, que estava acostumado ao calor, que no centro do Rio nem aquela
brisa soprava. Abel insistiu, explicando que “tem muita melancia espalhada
pela parte alta do terreno, que nasce sem a gente ver e que ele usava para
alimentar os porcos. Queria dar uma olhada nos bichos”. “Não, talvez outro
dia com mais calma”.
Joaquim Terroso tinha voltado com os garotos e o filho de Abel.
Trazia um saco cheio de aipim e inhame. Uma melancia vinha embrulhada num
jornal.
Balsa na Neblina
Percebe, meio sonolento, que a balsa está sendo engolida pela
neblina. Recosta-se no banco de trás do carro, sabendo que não vai
conseguir dormir. Queria chegar logo, mas esse querer espantava o sono. A
balsa que tinha tirado da ilha a equipe do jornal – ele, Paulo Sérgio,
fotógrafo e Adoniran, motorista – navegava, cada vez mais lenta, em direção
ao continente.
O
comandante, ou lá o que fosse, parecia amedrontado pela neblina. A noite
tinha chegado mais cedo e o apito, que cortava a escuridão e o silêncio,
parecia um grito de desespero. O fotógrafo tinha saído do carro.
- Tá
encagaçado, foi ajudar o motorista da balsa – brinca Adoniran Três Peixes.
O “Três Peixes”, inventado numa pescaria compartilhada com outros
fotógrafos, motoristas e contínuos do jornal, num rio da Baixada. O
motorista tinha sido o único a conseguir matar três peixes. No caso,
segundo os companheiros de pescaria, “três cascudos bem safados, de menos
de 10 centímetros”. Adoniran não estava nem aí, mas até a chefia de
reportagem tinha adotado o apelido. Três Peixes também disfarça seu medo
fingindo que dorme, sabendo que a travessia ainda vai durar algum
tempo.
A
ida até aquela ilha meio remota tinha sido em vão. A tal “loura assassinada
numa praia deserta”, não tinha o menor interesse para os leitores de um
jornal produzido para a classe média. O que na pauta parecia render, não
passava de uma história mal apurada. “Ninguém se interessa por crime de
pé-de-chinelo”, tinha ouvido nos primeiros dias de trabalho. Talvez
rendesse uma notinha de dez linhas; por isso tinha anotado nomes, hora,
motivação...
A loura que um
pauteiro - mais acostumado com as matérias de “cidade”: parques e jardins,
feira de livros, mudanças no trânsito do centro, melhorias no Aterro do
Flamengo - tinha sacado na ilha não passava de uma pobre menina, de dentes
estragados. E os cabelos eram oxigenados. Matéria envolvendo gente pobre,
muito pobre no caso, gente que não faz o gênero dos leitores do jornal;
meia lauda no máximo. O noivo, assassino confesso, viajava agora na caçapa
do camburão, ao lado do carro de reportagem, balançando na balsa - um
pescador ciumento que não gostava das viagens da menina oxigenada ao
continente. E que tinha enlouquecido depois da tentativa dela de desfazer o
noivado.
Os dois pobres diabos, Cineli Nicanor (branca, 19 anos, do lar) e
José do Carmo (branco, 22 anos, pescador) de vida dura, tinham nascido na
ilha.
E eram parentes distantes. “Se é que existiam parentes distantes”,
pensa, lembrando, com uma ponta de remorso, da morte recente de um primo,
para quem era “o jornalista”.
Parentesco exibido com orgulho nas reuniões entre engenheiros que
trabalhavam no município do Rio. Tinha ficado menos de dez minutos numa
festa preparada, dias antes, que um infarto fulminante o matasse na escada
do prédio onde morava. Só mais tarde, tinha descoberto que a festa, da qual
saíra pretextando “estar cheio de trabalho aquela noite”, tinha sido
preparada para ele.
Na
balsa segue também o rabecão com o corpo da moça para ser autopsiado no
IML. Imaginou o pouco caso do legista na autópsia de corpos como aquele. E
também o impacto sobre a família de um cadáver cheio de cortes e remendos
mal feitos na mesa do necrotério. “Matéria de merda” tinha ouvido Paulo
Sérgio praguejar baixo enquanto limpava com um pano molhado, emprestado
pela família, o rosto da moça para a “foto de arquivo”, depois do “local”
ter sido desarrumado pelo perito.
- “Com
certeza”, concordou baixinho, as palavras apagadas pelo bater suave das
ondas no casco da balsa.
A balsa
fica algum tempo quase parada no meio da nuvem, o motor desligado. Vozes
nervosas, amedrontadas, chegam até o carro de reportagem. “Não adianta nada
essa porra de apito”. O motorista, (acordado?) mais assustado agora, segura
o volante. Não responde. Não adianta
ficar pensando na possibilidade de um acidente aquela altura do campeonato.
- Essa
bosta vai demorar umas quatro horas pra chegar no continente - Três Peixes
finge que está irritado.
- E
daí?
- Daí
que vai ser difícil encontrar um lugar aberto pra gente jantar, porra!
Então,
quase que uma surpresa, a luzes do cais aparecem, bem mais próximas do que
poderia imaginar minutos atrás. Adoniran Três Peixes abre o sorriso de
alívio. A neblina desapareceu e sem sair do carro os dois viram Paulo
Sérgio conversando com a mulher bonita que tinham encontrado na ilha.
- Tá
se dando bem, o puto - aponta Três Peixes. - Será que tem a porra de um
banheiro por aí?
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