A
neblina forte que baixou no início da madrugada faz da lâmpada incandescente,
no poste, um borrão amarelado fosco. Atrás do balcão do bar, Creso vê a rua,
estreita, asfalto fino, esburacado, invadida pela massa esbranquiçada. E ouve
um cachorro, longe, que uiva sem parar, som que se mistura à música evangélica
tocando rouca em um rádio próximo dali.
Creso se impacienta. Já colocou as
cadeiras em cima de três das quatro mesas, e baixou a porta até a metade.
Antes, escorraçou Raminho, o bêbado perneta que vive com a mãe perto dali e
queria tomar a penúltima. Guardou também o avental e molhou e penteou os
cabelos para sinalizar a seu último freguês que está na hora de fechar. Nada, o
homem bem vestido, um pouco pálido, olhos presos na parede de ladrilho azul,
nem se toca.
Nem
se toca. Sentou, pediu uma cerveja em lata, falou que estava esperando um
amigo. Tinha chegado por volta de onze horas, quando só estava esperando que
Neuci e Jorjão gastassem a última ficha da mesa de sinuca e fossem embora.
Esperando alguém? Ali? Creso sabia que seu bar, na entrada da Rua A, da
comunidade da Quinta Lebrão, não era exatamente o melhor lugar para um cara bem
vestido, encontrar alguém. Mas, enfim, não era problema seu. Tinha falado que o
bar só ia ficar mais meia hora aberto, mas, quando seus olhos bateram nos do estranho,
teve um ligeiro sobressalto. O homem parecia estar nervoso, ia descendo uma
cerveja atrás da outra, não se importando com a marca, só pedindo a mais
gelada. Creso não conseguia entender como é que alguém podia ficar bebendo
assim sem dar uma mijadinha de vez em quando. E resolveu dar mais um tempo.
O
relógio marca uma hora da manhã. O estranho vê, sem dar a mínima, a passagem do
tempo e pede mais uma. Creso tem vontade de dizer que não, que não vai servir
mais nada, porra. Mas volta atrás: o cara que está sentado na única mesa do
salão, ele desconfia, tem problemas. E não teria ficado aquele tempo todo ali,
se não fosse por um bom motivo. Creso começa a imaginar, pelas roupas que
talvez... Talvez, quem sabe, estivesse à procura de uma mulher que, talvez, e
só talvez, tivesse fugido com outro, alguém mais jovem, menos pálido... Talvez
o cara estivesse desesperado, até aceitasse a mulher de volta, mesmo depois do
belo par de chifres que quase podia adivinhar. Um belo par de chifres, a mulher
fugindo com outro e o cara vindo atrás, pedindo pelo amor de Deus que ela
voltasse, que os chifres doíam, mas queria ela de volta assim mesmo.
Mas que porra de mulher? Mulher de um cara tão bem vestido ia se mandar
pra favela? Volta e meia, piranhazinhas,
bem transadas apareciam no bar. Entravam, pediam cigarro a varejo, às vezes
refrigerante, que a grana era pouca. O estranho teria alguma coisa a ver?
Talvez sim, mais talvez não. Será que a namorada do cara era uma das
piranhazinhas bem transadas. Dessas que nem parece que moram na favela. Talvez.
Creso sente um pouco de pena do estranho e resolve que espera mais dez
minutos. Afinal, esperar para fechar a casa é o de menos, quando tudo está tranquilo,
em paz.
Meses atrás, também na hora de fechar, tinha tido problema sério com um
PM novo na cidade: um tresoitão encostado na cabeça e um calote de cinco
cervejas e uns dez conhaques, além de dois pratos de linguiça tira gosto. O
puto tinha quebrado também as garrafas vazias que estavam na mesa. É por isso
mesmo que sempre tem alguém pronto pra matar PM.
A mulher, que acordou
assustada, disse que o estrago até tinha saído barato, Creso pensou em ir até o
quartel, dar queixa do soldado ao coronel comandante, mas voltou atrás.
Maurizete tinha falado, na mesma hora, que o PM nunca mais ia voltar e isso
estava acontecendo. Por via das dúvidas, tinha comprado, na mão de outro PM,
conhecido, um trinta e dois com caixa de munição.
Creso molha e penteia de novo o cabelo, vê uma cara cansada no espelho e
continua com pena de pedir mais uma vez ao homem pálido que vá embora.
Nessas horas dá vontade de fechar o bar, mudar de cidade, voltar a
dirigir o táxi. Mas o carro e o ponto foram trocados pelo bar e a casa nos
fundos, depois de um assalto em que, por pouco, muito pouco mesmo, não levava
dois tiros numa rua deserta a dois quilômetros dali do bar. Uma das balas,
disparada quase a queima roupa, tinha aranhado o alto da cabeça. Creso botou o
terno e foi à delegacia. Mas, dois meses depois, só tinha conseguido ouvir que
“a polícia estava investigando, a polícia estava investigando, já tinham o nome
do assaltante e coisa e tal”. Mais nada. Até o dia em que foi recebido aos
berros por um delegado de plantão que riu na cara dele e disse “que não tinha
tempo a perder com um assalto de merda”. Isso depois de ter passado, várias
vezes, dias inteiros de trabalho, na porta da delegacia, Maurizete direto atrás
do balcão, cansada, puta da vida. Então, entendeu que estava dando murro em
ponta de faca, como falava o pai, e deixou de gastar tempo com aquilo.
Além do dia inteiro atrás do balcão do bar, tinha aquela de ser obrigado
a conviver diariamente com gente como Olavo, o motorista de caminhão que há um
ano tinha matado a mulher e enterrado o corpo no quintal. Tudo na frente do
filho de sete anos. Na ocasião, a polícia veio, desenterrou o corpo, levou
Olavo, mas em duas semanas o filho da puta estava de novo em casa: sem
antecedentes, dirigia seu próprio caminhão, tinha endereço conhecido e coisa e
tal... O julgamento não tinha data pra acontecer e a prisão foi relaxada pelo
juiz da comarca. Olavo, toda noite, depois de parar o caminhão na porta, vinha
até o bar encher a cara.
O homem pálido bebe de vez a cerveja. Levanta quase derrubando a mesa,
mete a mão no bolso, tira a nota de cinquenta reais. Creso ouve própria voz,
cansada, fraca, quase impossível de ser ouvida.
- São cinquenta e sete reais, com o tira gosto.
- Tudo certo.
O homem põe uma nota
de vinte sobre a mesa.
Creso recebe, vai dar o troco, mas o homem pálido já se virou para sair.
Sai detrás do balcão e levanta a porta de aço, até onde seus braços alcançam.
Mesmo assim o homem abaixa a cabeça. Creso sente o perfume, bom, perfume de
gente com dinheiro, que acompanha o estranho de camisa social azul, cara, calça
também cara, a jaqueta de couro preto, sapatos novos esbranquiçados pela poeira
da rua.
O homem sai sem olhar para ele. Vai baixar a porta, mas para. Está tão
cansado que precisa respirar o ar frio da noite. Olha para fora e vê o cara bem
vestido desaparecendo na neblina da madrugada.
Os olhos de Creso não alcançam a escuridão do beco, do outro lado da
rua, a vinte metros dali, onde a sombra joga o cigarro no chão, pisa em cima, e
tira a pistola da mochila de plástico preto. Até que fim a hora tinha chegado
para a sombra. Que respira fundo, quando o homem é enquadrado pela luz fria que
sai do bar.
As mãos nos bolsos, o estranho anda rápido, olhando para o chão, talvez
com vontade de chegar logo na área iluminada pelo borrão de luz de desce do
próximo poste. Frustrado pelo encontro que não aconteceu?
A sombra ergue a pistola, aponta para a cabeça da silhueta recortada na
neblina e dá dois passos a frente, em silêncio.
O homem de jaqueta leva alguns segundos para perceber. Quando para, de
repente, já não há mais tempo. Seu instinto é proteger o rosto. Vai gritar, mas
a voz fica no meio caminho. Sente que arregala os olhos e a última coisa que
consegue ver é a chama vermelha, ferro em brasa, que se apaga rápido.
Tudo o que Creso ouve é o estalo de um tiro, bem pertinho dali. Depois
outro. Depois, o gemido, baixo, rouco, final.
Susto. Vai baixar a porta do bar, quando a luz se acende na casa em
frente. O velho Alcindo aparece na janela e, um segundo depois abre a porta. A
música evangélica chega mais alta.
- Que foi isso, Seu Creso?
- Sei não, parece tiro...
Alcindo já está passando pela porta feita de tábuas, um dia usadas na
construção de um prédio no bairro Santa Cecília e começa a caminhar na direção
do gemido. Creso vai atrás, empurrado pela certeza de que sabe quem levou o
tiro.
-
Ta ali!
Um braço está passado por trás da nuca e o outro numa posição estranha,
torta, os dedos parecendo querer arranhar o piso da rua de saibro.
Melhor não chegar perto, Seu Creso.
O
velho alfaiate acende o isqueiro.
-
Não conheço! – diz, aliviado.
Fala, mas recua um pouco, porque o sangue ainda escorre, vivo, do buraco
no meio da testa do morto, os olhos muito abertos.
- Virgem Maria. Vai chamar alguém, Creso!
O dono do bar tenta respirar fundo. Não consegue disfarçar um arrepio
gelado e ouve sua voz explicando:
- Ele acabou de sair lá do bar!
- Vai chamar alguém Seu Creso!
-
Quê isso Seu Alcindo! Quem matou ainda pode estar por aí... Vamos dar um tempo,
o cara já ta morto mesmo!
Alcindo continua com o isqueiro aceso. Da neblina começam a emergir
outros moradores da comunidade. Uma mulher dá um grito e vira o rosto quando vê
os olhos arregalados do morto. Alguém comenta que aquilo só pode ter sido algum
acerto de contas.