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segunda-feira, 13 de outubro de 2025

 

 

 

 

 

 

A Renúncia do Governador

 

                                    Às vezes acontece.

                                     O diretor responsável, o homem que carrega nos ombros a política editorial da emissora, o chefe supremo do jornalismo, a autoridade máxima da redação, o homem de confiança do dono de empresa, fica a ponto de tomar um furo catastrófico.

                                       A rapaziada, um ou dois degraus abaixo, adverte, mas Pedrosa, o filho dileto dos Deuses, acha que tem uma poderosa carta na manga. No caso, um contato próximo, de absoluta confiança - porque tem que ser de absoluta confiança! - que pode mudar a maré montante. Segundo o contato, o governador em exercício não vai renunciar. Embora todo mundo ache que vai.

 

                                       O “todo mundo” são as outras redações, de emissoras concorrentes, rádios, etc, etc. Então, quando "todo mundo" espera a saída do governador para as próximas horas, Pedrosa está certo de que não haverá renúncia.

 

Nesses casos quem tem a informação, também encarregado, às vezes, de vazar informações - é Olivério Dantas, o secretário particular do governador, que deve ligar passando a decisão: renúncia cancelada de novo.

                                             O Semideus da redação (Deus é o dono da TV, do jornal impresso, da rádio e também) do maior portal de Internet) acredita no seu informante. Acreditar faz parte do seu DNA, pelo menos até que esse informante falhe.

 

                                             E isso acontece. Mesmo quando o informante é agente duplo e se gaba, lá nos gabinetes de Brasília, de saber o que jornal da noite vai noticiar dali a duas horas.

 

                                            Um jornal do Rio, nos velhos tempos em que a mídia impressa contava, pagava os salários de um colunista eventual - aquele que escreve sazonalmente um artigo ou outro – só por causa de sua proximidade com um ex-presidente, ainda com alguma influência nas chamadas antessalas do poder.

 

                                            Seus serviços eram solicitados uma ou duas vezes por semana, mas no dia em que então presidente implantou seu Plano Econômico - que proibia quaisquer aumentos de preços, sob quaisquer circunstâncias - "fiscais do presidente" tornaram-se celebridades da mídia e houve ameaça de que alguns bois fossem recolhidos nos pastos - o colunista acidental passou a ter que trabalhar duro.

 

                                            Enchendo o saco dos assessores diretos do presidente. E até do próprio, que não teve jeito senão atender ao telefone umas duas ou três vezes. Em troca, presidente tinha total respaldo do jornal.

 

                                           Mas no caso da renúncia do governador...

 

                                        - O homem já renunciou Pedrosa!

                                          - Alguém já leu a carta, o texto da renúncia já chegou ao nosso site?

                                          - Não, mas até o pessoal da de Minas já tem a matéria!

                                          - Eu tenho informações de que a renúncia não vai acontecer.

                                        - Outra vez?

                                           - Outra vez, o homem é frio, conhece o jogo.

                                           - Mas, olha só Pedrosa, todo mundo, a concorrência já tá com a matéria no ar há pelo menos quinze minutos!

                                        - Vão ter que voltar atrás!

                               

                                          Pedrosa tinha informações seguras de que o homem ia negacear pela segunda vez. Afinal o informante, assessor informal no gabinete, era nada mais nada menos, que o segundo nome da hierarquia no pool de empresas do empresário/governador.

 

                                       Governador agora acuado pela Justiça Estadual, as provas - entrevistas de ex-parceiros tirando rapidamente o deles da reta e coisa e tal - algumas fajutas, outras concretas, brotando a toda hora em TVs, rádios e jornais.

 

                                       O tempo passava, o editor Francisco Pedrosa queria mais tempo para dar a notícia sozinho. A não renúncia do governador era certa mesmo? Pedrosa começava a sentir que, ele próprio, já tinha uma pontinha de dúvida. As chamadas nas rádios e TVs da concorrência já estavam no ar.

 

                                       Mas era preciso confiar no taco, arriscar. "Tudo o que o homem desejou na vida foi ser governador; não vai entregar isso de graça", tinha dito o assessor no meio da tarde.

                      

                                      Mas a confirmação da renúncia vem dois minutos depois. Uma TV a cabo entra com imagens em tempo real da saída do governador do palácio, em meio ao tumulto habitual nessas horas. Pouco depois, alguém da sucursal avisa que vai passar o texto da carta: duas ou três linhas informa o repórter autor da má notícia. Acabou.

 

                                     O Semideus Pedrosa está meio perplexo, manda que alguém faça uma ligação... Melhor, ele mesmo faz, pelo celular, mas o número do assessor informal está na caixa postal. O diretor responsável manda que liguem para o chefe de gabinete, mas desiste um minuto depois.

Vai para a sua sala. Naquele minuto o repórter especial Ronaldo Freitas já está finalizando o texto que vai interromper o capítulo da novela das nove.

                                   Pedrosa sabe que cometeu um erro e a exclusividade a não renúncia contra tudo e contra todos o pretenso furo de reportagem virou fumaça. O problema é que, a essa altura, os donos da emissora já sabiam o que tinha acontecido. "O jornal já sabe da renúncia?” – ligações com esse tipo de pergunta já deviam estar enchendo a caixa postal, dos proprietários da empresa. Pedrosa imagina vozes, anônimas para ele, mas confiáveis para os irmãos empresários, chegando aos celulares dos patrões.

   

                                     Naquele momento, o mais velho está bebendo uísque sozinho no terraço do apartamento em Ipanema, o do meio, na cama com a modelo, num apartamento coincidentemente na mesma quadra e o terceiro, no banco de trás do carro, com o filho, a caminho da casa de campo em Itaipava.

 

                                         Pedrosa imagina quanto tempo vai passar até que seu celular – exclusivos para comunicação com os três irmãos vão tocar na sua sala e a cobrança venha, nas asas nada suaves da voz de um dos filhos do patriarca: “você não disse hoje de manhã que o homem ia ficar?”

 

                                         Ou nas asas do próprio pai dele, naquele momento lendo um artigo de revista em que o jornal da família é massacrado.

 

                                          A voz do patriarca é gelada como os cubos de gelo que ele, Pedrosa, põe agora no copo de uísque. O mesmo uísque que bebe com certa regularidade depois que se tornou diretor responsável. E "está autoridade na emissora".

 

                                          E até acima de algumas autoridades, bajulado pelo secretário estadual de Fazenda ou mesmo pelo ministro do governo federal ao qual o jornal faz uma oposição light. É uma sensação agradável e ele tem que se esforçar para não deixar transparecer. Um prazer que, às vezes, faz com que se distraia.

 

-                                  "Desculpe, secretário, eu não entendi".

-                                   "Bom eu estava dizendo...”. 

                                         Mas o telefone não toca. O subeditor de política entra sem bater.

-                                       Já estamos com a renúncia no ar. Mas Pedrosa já sabe, acabou de desligar TV e se sente abalado.

                                      

                                      - OK. A carta...?

                                      - Na íntegra. São duas ou três linhas, nada mais. O Verniaux está preparando um editorial para o Jornal da Noite.

                                        - Nada de editorial, não quero opinião do jornal sobre a renúncia.

-                                         Tá certo.

 

                                           Pedrosa lembra que são dez para nove e quarenta. O pessoal da editoria de política também não tinha cruzado os braços, apesar da opinião dele e um resumo da gestão do governador que acabara de sair já estava pronto para o mesmo Jornal da Noite. Um subeditor estava finalizando o texto sobre a vida do renunciante.

 

                                            Renunciante? Era essa a palavra certa para o momento? Não sabia. De repente, seu mundo estava sendo abalado e o risco de quebra das colunas que o mantinham de pé parecia absurdamente plausível.

 

                                             Pensou na mulher, nos filhos pequenos, no apartamento de luxo, alugado, mas se o mundo desabasse, teria que voltar para o seu três quartos num condomínio de classe média na Barra, comprado pela Caixa, nos tempos em que ainda não passava de um editor na área de cidade: lixo demais nas ruas, praias poluídas pelo cocô da cachorrada, inauguração de hospital, problemas no zoológico, uma sessão especial na Academia Brasileira de Letras, o presidente com o governador inaugurando obras em uma favela, o bueiro explodindo em uma rua de Ipanema.

 

                                          E justo na rua onde morava o segundo irmão, a Cedae tinha acabado de abrir um buraco gigantesco. O homem não tinha conseguido sair de casa com o carro, os seguranças tiveram que ir chamar um táxi.

 

                                        “Me chama o Everardo! Ou melhor que isso, pergunta se a Cedae já tapou o buraco na rua do Doutor Heleno?"

                                           A resposta tinha vindo segundos depois.

                                             “Pedrosa, aquilo é coisa pra dois três dias!" – tinha dito pela manhã.

                                            “Absurdo".

                                             “Não é não. Os caras vão trocar um pedaço de adutora, mas têm que tomar cuidado com a tubulação de gás, os cabos da TV..."

 

                                             Pedrosa lembra-se de que um acordo, no governo anterior, permitira à empresa de TV por assinatura do grupo passar seus cabos, praticamente sem custos, pelos mesmos caminhos subterrâneos das tubulações de água e gás. Ele mesmo tinha conversado com o prefeito sobre o assunto.

 

                                              "Se as outras empresas não criarem problema..."

                                              "Com certeza não vão, prefeito”.

 

                                                A coisa foi feita. Os técnicos da TV por assinatura tiveram apenas que implantar um bueiro a mais na calçada e tudo certo.

 

                                                Pedrosa ganhou elogios do irmão mais velho que, uma vez, quando ele , Pedrosa, dava seus primeiros passos na redação, tinha apontado para uma TV e profetizado "essa porra é a nossa máquina de fazer dinheiro". Há quantos anos? Pedrosa não se lembrava mais.

 

                                                O telefone não toca, o pessoal da redação está relaxado e a renúncia do governador é o assunto. Carlos Roberto Capa, o repórter preferido dos deuses se aproxima.

                                            - Queria te lembrar que, até agora, nos só demos um ”urgente” de quatro ou cinco linhas Temos um texto maior pra entrar no próximo intervalo da novela. Dois minutos e meio.

 

                                              - Tá bom. O governador... ex-governador é... era amigo do jornal; não vamos fazer muito escarcéu.

 

                                                 Falava e ouvia suas próprias palavras ecoando, uma coisa estranha.

 

                                                 O telefone toca. É um velho jornalista, que trabalhara com o pai dos Deuses. Com mais de 80 anos tinha um cargo fictício de Diretor de Jornalismo, não apitava mais nada, mas, talvez para merecer o salário, ligava toda noite para a redação.

 

                                                - Pois não, Doutor Matheus. Já saímos com a notícia no intervalo da novela. Vamos entrar com outro texto no próximo intervalo. Nós estamos fazendo apenas o relato dos acontecimentos. Nada mais. Ok, ok, a coisa está discreta, o mais discreto possível, dadas as circunstâncias, Doutor Matheus.

 

                                                   Pedrosa fica um pouco mais calmo. Dentro de alguns minutos vai estar confortavelmente instalado no banco de trás do Passat, a caminho do apartamento no final de Leblon. A tempo de tomar um banho, esperar (as tradições têm que ser respeitadas) pelo menos 45 minutos até que Rosália troque duas ou três vezes de vestido, finalize a maquiagem e, depois, a recepção.

 

                                               O telefone toca.

 

                                                É o Deus Supremo, o maior dos Deuses no Olimpo da empresa. Quer saber por que as emissoras da concorrência, com muito menos recursos, já estavam no ar, desde cedo, com a renúncia do governador e eles não. Pedrosa pensou estar ouvindo o som de cubos de gelo num copo de cristal.

 

 

Garden Bar

                                       O táxi, vindo da Presidente Vargas, dobra na Rio Branco. A perspectiva da demissão , sair do jornal estava se tornando uma realidade visível como o obelisco, crescendo lá no final da avenida. Obelisco onde os homens de Getúlio Vargas tinham amarrado seus cavalos (simbologia, história ou puro marketing?) no dia 1º de novembro de 1930, vitória da Revolução.

                                         A cena, que irritara o pai durante toda a vida, estava arquivada, no cérebro, na pasta “ficção”. Durante muito tempo achava – sem ter a menor idéia do motivo - que aquela história não passava de conversa fiada de um carioca ressentido. O pai, também jornalista, tinha sido um, apoiador do Brigadeiro Eduardo Gomes, derrotado nas eleições de 45 pelo General Eurico Gaspar Dutra, apoiado por Getúlio.

                                       Jack, uma dia diretor do Grupo de Estudos Cinematográficos, com sede no histórico prédio da União Nacional dos Estudantes, na Praia do Flamengo, tomara o rumo oposto. Mas quando as discussões tornavam-se mais ríspidas, os dois, como num roteiro que devia ser seguido, mudavam de assunto. O futebol, a paixão do pai  pelo Flamengo – Jack também torcia pelo Flamengo – os jogos do campeonato carioca, Dida o grande nome do time na década de 50 era tão bom quanto Zico!?

                                        O obelisco vai ficando mais próximo enquanto o carro percorre lento a Rio Branco, muitos sinais, milhares de pessoas na calçada, ônibus dando fechada nos carros para pegar passageiros no ponto. O obelisco irritara o pai e a história dos cavalos amarrados ali era, para Jack, uma lenda.

                                        Isso até encontrar num livro a tal foto: um cavalo ao fundo, sobre os degraus do obelisco; duas filas de papagaios-de-pirata, lado a lado, abrindo espaço para o trabalho do fotógrafo. Talvez o cavalo em questão fosse o único levado até ali para a foto.

                                          Pede  ao motorista que encoste. Paga, quase é derrubado por um office boy apressado quando fecha a porta do táxi: Todo mundo apressado naquele final de tarde.

                                            Decisão tomada? Pedir demissão antes de ser demitido? Ou está apenas dando curso a uma paranóia. A verdade é que não tem a menor idéia do que vai fazer dali pra frente. Procurar um outro jornal? O terceiro em menos de três meses, aceitar o convite formal para trabalhar na assessoria do Instituto Nacional do Café, com um salário presumivelmente melhor? Largar a merda toda pra lá, dar um tempo, gastar a grana do acordo em férias bem longe do Rio?

                                         Tinha atravessado num sinal congrstionado, esbarrando em pessoas vindas na direção contrária – estava na contramão dos outros pedestres? – e, distraído passa pelo prédio da Biblioteca Nacional. Retornou quando percebe que já está na esquina da rua Santa Luzia.

                                           A maré tinha começado a mudar depois do episódio do cardeal, na Mangueira? Não rinha certeza.

                                          A lembrança é clara: o Cardeal  estava em “visita ecumênica” ao bairro de São Cristóvão com cobertura exclusiva do jornal. (Que outro jornal ia se interessar por aquela presepada?). Na ida ao Sindicato dos Metalúrgicos, tinha se aproximado para a entrevista e depois de ouvir as arengas habituais sobre as razões da vinda ao bairro, engatou uma pergunta sobre “notícias, veiculadas nos jornais dando conta da prisão de alguns filiados daquele mesmo sindicato”. “Eu não falo de política!” Voz estridente, seguida de um movimento brusco e batida em retirada do auditório onde a imprensa (no caso apenas ele) estava sendo recebida para a coletiva.

                                             Mas o  problema mesmo tinha acontecido no dia seguinte, um domingo de verão, em plena favela da Mangueira. Estava atrasado porque o carro de reportagem, com  fotógrafo a bordo, estava cobrindo um acidente com morte em Ramos e demorou mais do que o esperado para chegar ao local da visita.

                                           Na comunidade, sem cobertura da imprensa, a vista Sua (...) resolveu jogar a visita para o alto e a comitiva cruzou com o carro da reportagem na Rua Visconde de Niterói. 

                                            Para cumprir a pauta, tinha ido ao local da tal visita ecumênica, a quadra da Escola de Samba, onde dúzias de crianças com bandeirinhas na mão esperavam sua (eminência) e não estavam entendendo nada. Jackm fez algumas entrevistas, rápidas, na casa de um líder comunitário e sentiu a decepção.

                                            Uma decepção que, no primeiro momento não entendeu, porque achava que a rapaziada, ali estava apenas cumprindo a pauta, pouco cagando para o cardeal.

                                            Mas viu que não era assim. Algumas mulheres e parte da bateria da escola, escalada para a recepção, pareciam, para ele, absurdamente tristes. A decepção dos mangueirenses tinha sido transportada para a lauda e meia de matéria.

                                           A coisa teria morrido por ali se as dez linhas  tivessem chegado às mãos do pessoal do copy, ou algum editor de plantão na redação. Ao invés disso, por artes de algum demônio do jornalismo, o texto original, foi direto para a oficina dois andares abaixo. O revisor também não deu a mínima e, às oito da manhã do dia seguinte Sua (Reverendíssima) ligou para a casa do dono do jornal. 

                                   Desde a advertência verbal (depois por escrito)  e alguns resmungos do tipo: “Pra que isso?”, “Tá ganhando o quê com isso?” “Porra, você não sabia que o cardeal era amigo do homem!?”, solidários do pessoal da redação a paranóia tinha começado. Era visível a má vontade da chefia? Havia um certo constrangimento?

                                   A advertência por escrito sobre a matéria, considerada desrespeitosa pela direção, acabou sendo extensiva ao copy desk e, ouviu falar, também ao chefe da revisão. Mas depois daquele domingo fatídico... “

                                     - “Domingo Fatídico” é um título bom pra triller, tinha dito um velho repórter que estava se aposentando, - Jack ainda era olhado com reservas pelos novos colegas – quando conversavam sobre o episódio.

                                      Podia ser paranóia. Jack odiava, mas tinha   ouvido a palavra, mais de uma vez nas conversas; “paranóia pura, toca o barco, que ninguém da direção se lembra mais”. Mas estava começando a achar que as pautas que recebia pareciam deixar claro que sua permanência no jornal era questão de tempo.  

                                    Achou que estava realmente sendo jogado pra escanteio quando sua pauta. “Aumentos abusivos nos preços dos alimentos no Rio”, foi trocada na última hora. Luiz Carlos Rachid, o bom repórter que falava francês correntemente, foi mandado investigar os tais aumentos e para ele sobrou uma exposição de canários roller, no centro da cidade. Resolvida (uma resposta direta ao chefe da reportagem que fizera a troca) em vinte minutos pelo telefone.

                                    O organizador da mostra foi alcançado na padaria ao lado da loja, na Rua Dias da Cruz, no Meier, especialmente cedida para a exposição de mais de 50 gaiolas, com canários a serem premiados  segundo quesitos como cor, porte e canto. Aprendeu que os de cor vermelha, produto de manejo à base de ração especial e cenoura, embora mais vistosos para o respeitável público, nem sempre levavam a melhor nos concursos.

                                   “Algum prêmio para os vencedores?” “Uma taça, medalhas, diploma.” “Nossa associação ainda não dispõe de recursos para vôos maiores. Sem trocadilhos.” “Ok, obrigado”. Fechou a matéria com a relação dos premiados e um fotógrafo que estava na Zona Norte foi avisado pelo rádio do carro que deveria dar uma passadinha na mostra.                                  

                                       Naquela tarde, por volta de cinco e meia, depois de ler, reler e mexer no texto da segunda matéria do dia – “Mendigos são recolhido na Zona Sul” - foi mandado dar um pulo na Biblioteca Nacional. O chefe da reportagem sabia que o horário dele estava terminando e coisa e tal, mas precisava de alguém para cobrir  a doação de “livros raríssimos” que seriam entregues aos representantes do Ministério da Cultura, no Rio.

                         - Coisa rápida, o homem está lá esperando a gente; o pessoal do Ministério é que telefonou pedindo cobertura. Coisa simples. Você dá conta em quinze minutos.

                            Meia dúzia de repórteres já estavam falando com o doador.       

                           - Eu gostaria de saber o porquê da doação”?

                            - Meu filho, como você pode ver eu estou muito velho. Portanto...E depois, embora eu lamente, não há ninguém na minha família que se interesse por livros raros.”

                           A diretora, encarregada de receber formalmente a doação veio até onde ele se despedia do doador:

                            “Como é, para a biblioteca receber uma doação como essa?”

                            “Eu estou simplesmente maravilhada. Nós já conhecia a coleção do Professor Brunges, tínhamos acertado a doação há mais de dois meses mas...é sempre muito emocionante ver esses livros, pegar neles... A primeira edição de Dom Casmurro de Machado de Assis...” Há uma bíblia que, dentro de alguns dois ou três dias vai ser avaliada por um especialista e nós vamos poder confirmar, que foi impressa no século dezoito!”

                            - Por acaso há uma cópia da lista dos livros doados?

                            - Claro, vem comigo que eu providencio.

                              As oito da noite meia dúzia de frases tinham ficado na cabeça; as anotações e a listagem dos livros no banco do táxi. Felizmente tinha conseguido ligar para a biblioteca e uma boa alma, que se atrasara por causa da cerimônia, ditou, os nomes de alguns dos mais de 50 livros doados pelo professor Lício da Cunha Brunges. O nomes dos autores também chegaram via telefone. Dava para montar uma lauda e meia. e não duas e meia, como tinha pedido o editor de cidade.                                      

                              - Quê é que tá acontecendo, porra?                                                                                  

                              Quem pergunta é Ronaldo Freitas redator e ex-editorialista no  jornal, onde tinham trabalhado juntos, também demitido após  a chegada dos novos donos. Freitas era, agora, editor da página de polícia e entre ele e Jack havia uma espécie de cumplicidade.

                                      - Parece que vão me demitir. To sentindo isso a uma, duas semanas. Nos últimos tempos só faço matéria de merda, exposição de canários, limpeza de árvores no campo de Santana, distribuidora de gás com problemas nos encanamentos, doação de livros...

                                      - Ta indo pra casa? Te dou uma carona.

                                      - Meu carro tá no pátio.

                                      - Então me espera naquele boteco lá no Jardim de Alá. Aquele que vocês pinguços  costumam freqüentar.

                                     - O Garden?

                                     - Isso, o puto do meu filho deu pra baixar lá também.

                                     - O lugar é tranqüilo, se eu fosse você não me preocupava.

                                     - Te vejo lá             

                                     Algum trânsito na São Clemente, depois Humaitá, tranqüilo, Lagoa, Curva do Calombo, Corte do Cantagalo, seguindo direto pela orla até o Jardim de Alá.

                                       Freitas  já está sentado, na mesa com o filho e mais dois amigos dele. Os rapazes estavam esperando que Jack chegasse para dar o fora.

-                                                - Esse puto acha que meu dinheiro é

  capim!                                     

                                         Ronaldo Freitas finge que está irritado, o filho estava a fim de grana para o programa daquela noite.

                                        - Vai beber o quê.

                                         Jack nem chega a sentar porque o abraço no garçon sela um reencontro com alguém que conhece desde os tempos do segundo grau, quando parava todas as noites no Garden, com Ulisses, Luis Carlos, Gaúcho e um ou outro conhecido. Agora a geração dos filhos de Freitas é que frequentava o bar, ao lado da rua que levava de Ipanema a Lagoa. .

                                         A vodca de Jack é generosa; Freitas bebe um uísque. Não  especifica a marca e a familiaridade dele com o outro garçon traz para Jack a certeza de que o editor de Polícia é frequntador do Garden. 

                                       - E então? O que é que você vai fazer? Logo agora que as coisas não vaõ bem em casa.

                                       Jack se arrepende de ter falado com alguem sobre seus problemas com a mulher. De repente seu mundovai sendo invadido. Mas a culpa é dele mesmo. Culpa de soltar a língua depois da quinta ou sexta vodca. Vai responder, mas deve ter mostrado alguma dificuldade com a pergunta, porque Freitas engata outra imediatamente.

                                     - E quanto ao trabalho no jornal.

                                       - Não sei... não sei ainda. Acho que vou pedir demissão.

                                       - Por quê?

                                       - Acho que vou ser chutado pra escanteio, o homem me olha de lado, o doutor Alonso cruzou comigo na portaria e virou a cara.

                                       - Tem certeza que ele te conhece?

                                       - Absoluta. O Régis me apresentou dias depois de eu começar a trabalhar. Depois que eu fiz aquela matéria sobre a mata atlântica, ano passado e ele até veio me cumprimentar...

                                       - Olha, você tem o problema da bebida. E andou dando uns vacilos...

                                        - Não deixei nunca de cumprir uma pauta!

                                         - Mas tem o cheiro da bebida, os olhos vermelhos, essas coisas que você sabe muito melhor do que eu. E tem a expectativa Jack, o Tavares diz que esperava muito mais de você e ele tem razão, Jack, você tá sempre deixando claro que o trabalho não te interessa.

                                           - Dá pra notar!?  - um Jack quase divertidio. O “dá pra notar” serve para a bebida e o desinteresse. – Bom, nos últimos tempos, faz tempo eu só tenho bebido vodca. Vodca não tem cheiro...

                                            Mas Freitas já está distante, o sinal abre e os carros cruzam passam ao lado do Canal do Jardim de Alá, em direção a Lagoa.

                                         - Que tal trabalhar comigo!? Na polícia não tem encheção de saco.    

-                                                 -Talvez seja uma boa. É minha única alternativa?

-          

-                                                - Isso é você quem sabe.

-          

                                        “A noite em Ipanema estava perdendo o brilho.” A frase tinha saído da boca de um dos amigos de Góes que chegara, quando já estavam de saída. Entrou no carro seguiu até a praia. Havia um cheiro forte de maresia no ar e casais passeavam, aproveitando a brisa fresca. Algumas prostitutas estavam na calçada da pista de subida para o Leblon. 

 

 

 

Paraty

 

                                  A dona da pousada tinha saído com o fotógrafo. Ficou sentado no banco, o copo d água, esvaziado, na mão. O jardineiro, que estivera xingando baixo enquanto molhava os pés de gerânio com o regador de plástico, também tinha sumido. Ficou só, a calma da tarde quente e ensolarada.

                                   Mas o calor, ali, era parcialmente amaciado por centenas de samambaias choronas que pendiam das ripas no teto da varanda da pousada. Jack sabia que ainda devia estar pálido, efeitos de uma noite de sábado sem sono, o domingo começando mal, a matéria começando mal, a sensação de que aquilo não ia dar em nada. 

 

                                 E tinha sido quase obrigado, por uma tonteira repentina, a sentar naquele banco no meio do pátio, onde a profusão de plantas se misturava com gaiolas de passarinhos. Viu coleiros, canários-da-terra, avinhados, um azulão, um sanhaço. Uma camareira veio perguntar se ele precisava de mais alguma coisa. E voltou, dois minutos depois com o conhaque.

                                 Pediu o segundo antes mesmo de segurar o copo. Conhaque podia não descer muito bem com aquele calor, mas foi a primeira coisa que veio à cabeça, ainda chacoalhada pelo som vagabundo da boate, na noite anterior. Podia ter pedido uma cerveja, mas achava que cerveja não combinava bem com o que estava sentindo naquele momento. Uma queda de pressão? A dona da pousada devia estar achando que ele estava doente e não queria corresponder a essa impressão.                  

                                   A moça chega com o segundo conhaque e um sorriso. Sorri de volta. O conhaque desce enquanto ela espera para levar o cálice, sorrindo, morena, quase bonita, pernas ótimas, “talvez pudesse marcar alguma coisa mais tarde?” Impossível, claro; não ia haver um “mais tarde” naquele dia em Paraty. Tinha que voltar, a mulher já devia estar amarga, sabendo que ele não ia chegar a tempo de irem à recepção que o pai dela estava oferecendo ao escritor argentino, que passava pelo Rio a caminho da Espanha.

                                      Ela iria sozinha. Já estava acostumada com as desculpas óbvias e repetitivas, a conversa mole de matérias no meio da noite, incêndio em São Cristóvão, desastre, com três mortos entre as ferragens do carro em Campo Grande, prisão do bandido conhecido que ia render um quarto de página, quem sabe chamada na capa... Antes, ficava muda no outro lado da linha; agora desligava o telefone. Ou nem deixava que ele terminasse a frase.

                                        Uma noite alguém atendeu ao telefone na redação e contou que ele estava jogando boliche perto da zona de prostituição no Mangue. Mas a desculpa estava pronta. “Estava lá porque era provável que alguém, alguém ligado a uma quadrilha de assaltantes de banco, fosse aparecer ali no Boliche...” Nunca conseguiu saber quem tinha quebrado a regra, segundo a qual todo repórter sempre estava “na rua a serviço”, esquema já aprendido em seu primeiro dia, na redação.

 

                                   Começa a andar entre gaiolas e xaxins de samambaias, rosto roçado de leve pelas hastes verdes, algumas com mais de dois metros de comprimento. O avinhado se assusta com a aproximação e começa a pular rápido de um poleiro pra outro. “Canta, mais foi pego há pouco tempo”, pensa. Os sanhaços, duas gaiolas lado a lado, são mais mansos. Um tiê-sangue, vermelho e preto, mas de pouco canto, desdenhado pelos passarinheiros. “Uma passada do IBAMA por aqui e adeus passarinhada...” Quando está na frente da gaiola do coleiro, a dona da pousada aparece com o fotógrafo. “O senhor está melhor?” “Claro, deve ter sido o calor, calor e a noite mal dormida”. “Mas já está tudo bem?” “Está tudo bem, tudo bem".

 

                                        Pega a caneta e começa as desenhar palavras esparsas, códigos próprios, nas laudas dobradas em quatro.  “Ela sabe alguma coisa sobre a casa? Alguma coisa que a distinguisse das outras, por exemplo, um morador ilustre no passado? Algum fato, alguma história antiga?” Nada, não sabe nada. “Tinha comprado a propriedade, que estava em péssimo estado, há seis anos mais ou menos. Aliás, teve que recuperar a fachada, com o pessoal do Patrimônio Histórico vigiando de perto e encarecendo a obra. Uma imobiliária tinha intermediado o negócio, mas o antigo dono ainda vivia ali mesmo, na cidade. Queria o endereço dele?”

                                         - Não, não é preciso. No Patrimônio Histórico, talvez, eles saibam de alguma coisa...

                                         - Não se pode alterar nada, até o material usado tem que ser especial. Encarece muito. O senhor não vai encontrar ninguém do Patrimônio Histórico por aqui num domingo.

                                         - Imagino. Há quanto tempo o pintor morava na pousada? Quantos anos ele tinha mesmo?

 

                                         - Mais de oitenta anos.

 

                                           - Estava doente, mas... continuava trabalhando?                                      

                                           Pela primeira vez os olhos dele e dela se encontram. Sem constrangimento.

                                          - Continuava pintando mesmo depois que ficou adoentado? Muita gente vinha visitar?

                                          - Ele só recebia o marchand. Ou a filha. Mas sempre de má vontade.

 

                                         

                                          Uma fortuna em quadros que a filha tinha mandado recolher no mesmo dia. Enquanto passeava pela casa, a quase certeza de que a dona da pousada tinha escondido alguma coisa. Talvez os mais recentes, desconhecidos da filha e do marchand.

                                           - Os quadros, os mais recentes, pintados aqui, nos últimos anos, estavam com ele?

                                           O homem era considerado o último dos expressionistas brasileiros, a maior parte da vida na França, até voltar, com certeza acuado pela proximidade da morte.

                                           - Ele voltou porque foi aqui, em Parati, que pintou o primeiro quadro. A marina que abriu as portas para o sucesso, na década de 30. Os quadros estavam com ele, mas a filha levou todos.

                                           - Só por curiosidade. Alguém já avaliou o quanto valem as obras dele? Quero dizer, as que ele pintou ultimamente.

                                           - No ano passado um quadro foi vendido por mais de trinta mil dólares, disseram.

                                       Resposta rápida, precisa. Olhos rapidamente procurando o chão do pátio.

                                        “Deve ter ficado com uns quatro ou cinco, que ninguém é idiota. Aturou o velho esse tempo todo, não ia sair de mãos vazias. Daqui a quanto tempo esses quadros vão estar decorando a casa de algum ricaço? É do jogo, todo mundo se vira”.                                    

                                        - Morte natural, nenhuma suspeita, nenhuma possibilidade?

                                        Um pequeno susto, olhos que brilham, raio caindo em pleno sol, mas ela não precisa desviar o rosto.

                                        - Mas de jeito nenhum! Nós tomávamos conta dele!

 

                                         A matéria ia morrer por ali mesmo, bastava um telefonema avisando que não havia o que levantar. O velho tinha morrido de doença, a filha arranjou alguém para liberar o cadáver da autópsia e agora mesmo, na redação, a mais de 200 quilômetros dali alguém, possivelmente um especialista trabalhando no Segundo Caderno, devia estar preparando meia página de obituário. O papel da repórter de polícia tinha terminado ali.

                                          - Queria mais um conhaque?

                                          - Claro, mas vou pagar. Os três.

                                          - Absolutamente.

                                      - Olha, é uma norma da casa, o jornal paga as despesas... eventuais. Passarinhos muito bonitos, os seus.

                                          - Meu marido gostava, agora que ele está em São Paulo, eu cuido.

                                            “Será que o maridão já sabe dos quadros, escondidos em algum lugar da casa? Ou ela vai comer o doce sozinha? E se desse um tranco? “Sei que você ficou com algumas pinturas do homem e coisa e tal...”

                                            - Bom, nós vamos indo.         

                                            Abre a porta do carro de reportagem, o motorista acorda. Fica esperando no silêncio da tarde, que a dona da pousada embrulhe num jornal duas mudas de samambaias para o fotógrafo. A noite ainda ia demorar a chegar e o motorista tinha fama de lento.               

                                            Jack joga o paletó no banco detrás, junto com mudas de samambaias. Motorista e fotógrafo, na frente começavam a falar de plantas, velhas casas, em subúrbios do Rio, com mangueiras como aquela... casas que tinham mangueiras, pés de abiu... É, o abiu é uma fruta que não se encontra mais...

 

 

 

A morte na praia   

                               

                            Ficou olhando, divertido, Rita jogar a bolsa e os óculos escuros no balcão do quiosque, cruzar os braços e virar de costas. Desde a saída do jornal, no centro do Rio, ela, a estagiária rebelde, ou coisa do gênero, tinha se limitado a olhar pela janela do carro, sem trocar uma palavra com ele ou mesmo com Silas, o fotógrafo, sentado no banco do carona.

                            As únicas coisas ditas no trajeto entre a redação e a praia tinham sido para o motorista, respondendo a uma pergunta bem humorada sobre a matéria do dia anterior. Matéria que não tinha dado certo. A pessoa que deveria ser entrevistada, segundo ela, não apareceu e nem deixou recado.

                               A irritação tinha sido imediatamente percebida pelo garoto do quiosque, que estava servindo a primeira lata de cerveja. Um minuto depois de dar as costas, ela se volta. Aparentemente ia fazer uma pergunta, mas deve ter desistido e resolveu buscar o maço de cigarros da bolsa.

                               Ali, naquela praia deserta, numa quarta-feira de julho, sem sol, a jovem, talvez futura repórter, tinha ficado sozinha na primeira meia hora, até resolver sair do carro e procurar abrigo no quiosque.

                                      A pergunta foi adiada, talvez à espera de alguma palavra, algum sinal da parte dele. Mas preferiu ficar calado. Sabe que ela está irritada porque, naquela manhã, fora informada de que deveria ir com a equipe da reportagem de polícia a um condomínio, no litoral, onde um homicídio produzira a manchete da página, dois dias antes, e estava tendo razoável cobertura de todos os jornais do Rio. Apesar de, até aquele momento, nenhum outro carro de reportagem ter aparecido na praia.

                                       Acompanhar um repórter veterano na cobertura de um crime, devia ser mesmo um castigo para quem acabara de sair da faculdade e sonhava com um estrelato na imprensa.

                                      Sorri antes do primeiro gole. O pontapé inicial para quebrar o gelo.      

                                       - Talvez você nunca tenha visto alguém beber as nove e meia da manhã.

                                       - Não, acho que não. Mas eu não me importo.

                                       - É um péssimo hábito.

                                      

                                       A pretensão de se explicar, de dizer que aquilo era comum entre os repórteres do seu tempo, apenas meia verdade, mais folclore do que propriamente realidade, é demolida por uma sensação de inutilidade.

                                       Mas o efeito da cerveja, somado a todo o uísque barato da noite passada, faz com que embarque na viagem rápida para a euforia e, de repente, quase sente pena da menina diante dele, frágil, a saia comprida, a blusa clara e um colete de crochê bege, braços finos de pelos ouriçados pela temperatura da manhã.

                                      - Posso fazer alguma coisa para você relaxar? 

-                                      - Pode me dar uma informação: quanto tempo, você que é tão experiente, acha que a gente vai ficar por aqui? 

                                   - Quem disse que eu sou “tão experiente”?

                                   - Ouvi por aí.

                                   - Escuta, qual é o problema?

 

                                   Ela baixa os olhos pela primeira vez desde que tinham se encontrado naquela manhã. E olha, sem ver, a areia quase branca, o mar chumbo acinzentado, naquela praia deserta, com mansões de muros infinitos, portões de aço, guaritas internas e cães, muitos cães que exibiam os dentes, dominados por guardas de segurança com um pouco de escárnio nos sorrisos, deixando claro que a qualquer momento podiam soltar as guias e deixar que as feras estraçalhassem os intrusos.   

                                      - Mandaram que eu colasse em você.

                                      - Pra quê?

                                      - Sei lá, não tenho a menor ideia!

                                      - Eu tenho; querem que você veja o horror de perto.

                                      - Isso é piada?                                     

                                      Não era. Rita estava há poucas semanas no jornal e, segundo o editor de cidade, ia ser uma boa repórter. Mas a autossuficiência, a defesa meio alucinada de alguns pontos de vista tinham produzido estragos no relacionamento com quem estava acima dela.

                                       E irritação. Então, o chefe da reportagem deve ter achado que era melhor ela dar um tempo em áreas menos nobres, “pra ganhar um pouco de humildade, talvez”.

                                      Tinha sido avisado. Mas, ao contrário da raiva, exibida no trajeto, Rita parecia um pouco acuada naquele instante, abrindo a bolsa e tirando lá de dentro o maço de Hollywood e o isqueiro.

                                     O fotógrafo tenta falar com a redação pelo rádio do carro, mas não consegue, porque estão fora da área de cobertura da antena. O motorista brinca com o vira-lata preto e branco que apareceu por ali, depois que os dois carros da polícia entraram no casarão. Os portões foram fechados e os cães da mansão pararam de latir. Olha o mar, a curva da terra logo ali, enquanto a cerveja, quase congelada porque passou a noite no freezer, desliza pela garganta.

                                     O rosto de Rita é bonito, olhos negros grandes, amendoados. Ela volta a colocar os óculos escuros, apesar do dia nublado e ele vê, nas lentes, que a praia parece não ter fim. O garoto, por trás do balcão do quiosque quer saber se ele quer mais uma. Faz um sinal que sim com a cabeça.

-                                    - Acho que sei por que você está irritada. E acho também que tem razão. Portanto, se você quiser voltar pro carro e esperar, eu não me importo. Não precisa colar comigo, como mandaram. Aliás, o que vamos ver lá dentro não vai ser nada agradável.

-                                     - E o que é que nós vamos ver lá dentro?

-                                     - O corpo de um homem que morreu há uma semana, dez dias, não se sabe muito bem. Uma visão nem um pouco agradável.

-                                     - Você gosta desse trabalho?

                                     - Não me importo.

-                                     - Como não se importa!? Não gostaria de trabalhar em outra editoria... cidade, economia...?

                                      - Já trabalhei, não dou a mínima.

                                      - Entendo. Ou melhor, não entendo. Passar o tempo todo acompanhando a violência, crimes, desastres, desgraças... Coisas...

                                      -... sem importância.

                                      - Não foi isso que eu quis dizer.

                                      - Foi, mas eu não me importo. E até concordo que são coisas sem a mínima importância.

                                   

                                       O vira-lata cansou das brincadeiras com o motorista e veio para o quiosque. Rita se abaixa. O cachorro se anima e começa a pular. Ela fica de pé, e pede que ele não pule, que está sujando a sua roupa! Mas não adianta. O garoto então sai detrás do balcão e dá um chute no cachorro, que se afasta alguns metros. Rita reclama que o pontapé poderia “ter machucado o bicho”.

                                        - Trabalhar na área policial é mais cômodo?

                                        - Nem sempre. Às vezes as coisas se complicam, você tem que ficar no local por mais tempo, essas coisas... Semana passada fiquei três dias em Barbacena.

-                                        - Sei você não quer falar sobre isso.

                                        - Não, não me importo. O problema não é exatamente trabalhar na área de polícia ou qualquer outra. No fim é tudo a mesma coisa.

-                                         - Eu não concordo. Eu não gostaria de trabalhar nessa área. Inclusive, porque não se aprende nada, não se evolui profissionalmente.

-                                         

-                                            Ele mesmo achava isso no passado. Tinha começado fazendo polícia porque esse era o caminho normal para quem chegava às redações sem curso de jornalismo. O outro caminho era começar pela editoria de esportes, coisa que não entendia.

-       

-                                              Tinha começado na polícia, passado pela editoria de cidade e retornado, porque rapidamente descobrira que não tinha nada a ver com o jornalismo. Que não se importava. Tempos atrás até assumira a chefia de reportagem, mas o cargo só trouxe problemas. Não com os repórteres, mas com a direção de jornalismo.

-       

-                                                Voltara a ser repórter agora chamado de “especial”, fazendo matérias Brasil afora. Mas acabara mudando de jornal.  A pouca motivação em uma assessoria de imprensa, onde o salário, aliás, era bem melhor, provocou um razoável aumento no nível das bebedeiras diárias: uma semana sem aparecer no Instituto Nacional do Cinema passou a ser uma prática meio comum.

-                                               Acabou voltando para o jornal onde tinha começado na profissão, um pouco por inércia, um pouco porque era conhecido e tinha um texto considerado bom. 

-                                           - Para dizer a verdade eu acho o jornalismo uma profissão de merda. Tanto faz polícia ou economia, ou esportes...

                                   

                                            Rita olha para ele, espantada. Vai responder, mas o vira-lata está de volta. Chega, desta vez mais calmo, abanando o rabo, mas sem pular. Ela se abaixa volta a acariciar o focinho magro, quase totalmente preto em contraste com o corpo, de pelos brancos.

-                                           - Desculpe, eu estou sendo meio grosseiro. Peço desculpas.               

-                                           

-                                           A terceira lata de cerveja custa a descer. Na verdade está apenas querendo se reidratar, depois da noite bebendo sozinho, num bar perto de casa. Vai jogar a lata pela metade na areia, mas recua. Pergunta ao garoto onde fica o lixo.

-                                             - É, mas também pode ser que eu seja cético demais, desiludido demais ou talvez cínico demais... Aliás, eu sou um péssimo exemplo. Além disso, boa parte em que eu trabalhei como repórter foi no tempo da censura.

                                            

                                             Porteira aberta para um tema fácil de discutir.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

                                             - Naquela época todo mundo sonhava com o fim da ditadura, achando que a derrubada dos milicos ia produzir um jornalismo, abre aspas, imparcial, limpo, criativo e outros adjetivos, fecha aspas.

 

                                         Fica feliz porque conduziu a conversa para uma de suas teorias preferidas. E repetida tantas vezes que o terreno fica seguro e os riscos de se perder, sob o efeito da bebida, são bem menores. Além disso, parece que consegue a atenção de Rita.

                                    - E na sua opinião...?

                                    - Para ser sincero, eu acho que a longo prazo a coisa não melhorou muito. Ou seja, eu quase tenho saudades do tempo em que os censores estavam nas redações. Pelo menos a gente podia sonhar com um jornalismo... que é, visto sob a ótica de hoje, uma utopia. Nós íamos poder escrever sobre tudo, denunciar tudo, e outras babaquices do gênero.

                                     - E...?

-                                      Sabe que aquilo é puro exibicionismo. Há muito tempo não acredita na sua própria retórica. Uma retórica olhada com desconfiança pelos colegas de redação e que, com o tempo acabou se tornando ridícula. Com o tempo ele mesmo tinha deixado de acreditar totalmente no que dizia. Ou pior que isso, não ligava a mínima. Mas ali, naquele momento, uma espécie de euforia alavancada pela cerveja, quer impressionar a garota espevitada ali na sua frente. A saída é não fugir do roteiro conhecido.

-                                     - Ninguém sentiu isso do dia pra noite. A coisa veio aos poucos e pra muita gente nem veio.

-                                      - Como assim?

-                                      - Bom, logo no começo o pessoal achava que tinha que ir devagar com o andor. As matérias sobre cemitérios clandestinos, sobre a guerrilha na região do Araguaia, por exemplo, faziam os donos de jornais coçarem a cabeça e só foram para as páginas alguns anos depois...

                                        - Mas você começou dizendo que sentia saudades dos censores nas redações...

                                         - É claro que isso é uma besteira. E das grandes. Em primeiro lugar, o jornalismo anterior à ditadura também tinha suas limitações que, aliás, estão completamente esquecidas. E acreditava-se que a derrubada dos generais produziria um jornalismo novo, totalmente independente. Independente do ponto de vista do repórter, bem entendido.    

                                      - Mas...?

-                                      - Pra começar, naquele tempo, nas redações... todo mundo estava contra a ditadura militar. Quando a censura acabou é que nós começamos a nos distinguir: direitistas boa gente, esquerdistas de vários matizes, comunistas, liberais, ressentidos, patrões e empregados e vai por aí.

-                                           

                                     Rita tira o maço da bolsa, mas se decepciona: maço vazio. Olha para o garoto e pergunta se tem cigarros no quiosque. O garoto informa que só a varejo. Ela compra dois, paga com moedinhas que vão aparecendo no fundo da bolsa. Nesse momento, sente um pouco de pena.

                                    Talvez ela não seja tão petulante, a palavra petulante tinha sido pronunciada pelo subchefe de reportagem que, com certeza, não tivera a mínima paciência. Faz um esforço; sabe que a sensibilidade que aflora de repente é só uma resposta ao efeito da bebida.

                                  Rita tem dificuldade em acender o cigarro. Ajuda. Vai com as mãos em concha e, por um breve instante, os dois se tocam.

-                                       - Então?

                                       - Então nada, terminei o discurso.

                                       - Se eu entendi, os censores foram embora, mas na sua opinião as coisas não melhoraram nada!                  

                                        Fica de repente arrependido de ter iniciado aquela conversa. Até porque Rita retomou o arzinho “petulante” e com certeza vai querer contestar tudo o que ele disser. Mas é um assunto que já discutiu muito. Então, basta repetir os argumentos de outras conversas.

                                        - Acho que a tecnologia aumentou os custos e fez com que os veículos, dos maiores e até os de porte médio, acabassem prisioneiros dos grandes anunciantes, o governo, as transnacionais... Isso criou, na minha opinião, uma forma muito mais sutil e perniciosa de controle sobre corações e mentes. Que se institucionalizou e, é invisível para o leitor, telespectador, ouvinte, com um nível médio ou pequeno de informação.

                                          - Isso não é um pouco de paranoia?

-                                          - Talvez, mas o telespectador, o leitor, o ouvinte com um nível baixo de informação, não entende noventa por cento do que é mostrado nos jornais da noite na TV, não lê jornal, a não ser eventualmente e com dificuldade. A maioria se limita às páginas de polícia, futebol, notícias sobre novelas... Assim, ele nem percebe que está sendo enganado e que o que a mídia veicula é o que interessa aos anunciantes. Sei que essa é uma opinião que pode parecer estranha, mas...

                                 

                                        Rita ficou pensativa por alguns instantes. Estava tentada a concordar, mas seu interlocutor, a barba crescida, o paletó amassado, a gravata vagabunda, velha, não é o protótipo de alguém que tenha coisas sérias a dizer. Mas ele insiste.

 

                                        - O problema é que hoje as limitações do jornalismo não dependem mais de um censor idiota com primeiro grau incompleto, inseguro, querendo desesperadamente subir na vida e por isso mesmo muito perigoso. Hoje essas limitações são impostas por um editor educado, culto, sutil, perfeitamente antenado com a linha do jornal, que sabe a maneira, abre aspas, correta, fecha aspas, de como a notícia deve sair, seu formato, quem deve ser entrevistado, e quem não deve, o que vai no lead da matéria e, o que deve ser sutilmente omitido.

                                   - Olha, desculpe, mas eu acho que você está exagerando um pouco.

                             

                             Ligeira irritação na resposta. Ele sorri. É, talvez esteja exagerando um pouco. Mas insiste, porque agora está se divertindo.

                                  - Veja, em noventa por cento dos casos o repórter já sai da redação com uma pauta feita. E a pauta que já dá as dicas como, por exemplo, quem deve ser entrevistado. Muitas vezes o repórter recebe sugestões de perguntas que devem ser feitas... Isso já deve, inclusive, ter acontecido com você. E vai por aí...                                                        

                                   Mas perde o pique. Ouve o barulho do vento que começa a levantar a areia fina. O garoto do quiosque que estivera prestando atenção, sem entender, vira o rosto. Parada para mais um gole. Pede uma cachaça. Nuvens brancas e esparsas passando por sobre um azul de verdade. Sente que a depressão pode vir a ser a sombra negra, grudada nele pelo sol da manhã. De repente, perdeu a vontade de continuar falando.

                                     Duas horas mais tarde, já a caminho do jornal, Rita aceitou tomar um conhaque com ele. Ainda estava branca e suava frio, depois do quase desmaio. No restaurante à beira da estrada, ao lado do posto onde o carro estava sendo abastecido, a repórter tinha dito que o cheiro e não a visão do cadáver inchado provocara nela aquela “surpreendente queda de pressão.”

 

 

 

O Plantonista

 

Armando Silva era o plantonista noturno. Chegava as dez, passava a noite empunhando o telefone, correndo atrás de crimes hediondos, acidentes de trânsito com morte, incêndios, fuga de presos, deslizamentos de terra com gente soterrada & afins. 


E, com sorte ou azar - não ligava muito - às sete da manhã estava caminhando pelas ruas do centro do Rio, de volta pra casa - Armando morava sozinho num quitinete na Lapa - “a caminho do sono dos injustos”, segundo definição dele próprio.

Sono que durava até duas da tarde, quando o repórter ia às compras, dava um jeito na casa, preparava o jantar e via um pouco de TV: somente o noticiário policial, “por razões de ofício”. Então, tomava um banho frio e se preparava para estar as dez em ponto na redação, àquela altura já quase vazia. 

O repórter novo na casa, “um merdinha”, segundo o experiente Silva, que toda noite esperava ansioso a rendição, nem olhava pra ele. Dava um “até amanhã, chefia” para o editor - naquele momento acabando de fechar as duas páginas policiais - e corria para o elevador. “Um merdinha”. 

Nem sempre as coisas “corriam bem” no dia a dia do plantonista, entendendo-se por “correr bem” conseguir que uma de suas matérias chegasse às páginas do jornal, se possível assinada. O que seria um aborto, num jornal que fazia questão de esconder seus talentos, segundo a sua opinião.. 

Em 12 anos emplacara o nome apenas uma vez - em conjunto com mais três repórteres e dois fotógrafos - na queda de um avião de porte médio no interior do Rio. Ele contribuíra passando a noite no necrotério, entrevistando parentes que chegavam para identificar as vítimas. 

Um crime envolvendo gente de grana num apartamento chique da zona sul, um incêndio de grandes proporções em Resende, o velho artista da TV estrangulado pelo pivete que frequentava seu apartamento, a prostituta jogada do décimo andar, caindo em cima de um táxi na Avenida Copacabana eram matérias nas quais seu nome deveria estar, mas... Silva tinha sempre a sensação de que era boicotado. O plantonista não tinha amigos, era odiado pelos companheiros de editoria e tido como mau caráter por boa parte de redação. 

Silva era dono de um mau humor perpetuado - a culpa era de seus textos fracos, segundo o editor de polícia - porque não lhe davam uma chance de trabalhar durante o dia ou mesmo de sair da área policial para, por exemplo, fazer matérias sobre cidade, esportes, política... O plantonista confidenciava a seus “inimigos mais íntimos” que para ele não havia problemas, “no jornalismo era capaz de jogar nas onze”. 

Seu mau humor, às vezes, ultrapassava as paredes de pé direito alto da redação. E volta e meia acabava envolvido em altercações com policiais, testemunhas e até vítimas, durante as reportagens. Nas discussões que se seguiam, os homens da lei geralmente preferiam baixar a bola, porque o jornal em que Silva trabalhava tinha peso. 

Um telefonema, dado pelo diretor de redação ao chefe de polícia do Rio, podia significar uma longa passagem do inspetor, ou mesmo do detetive em questão, por terras do agradável município de Sapucaia. Ou qualquer outro buraco distante do Rio, onde a grana deixada pelo jogo do bicho – envelopes fechados na mesa do delegado titular toda semana – não chegava nunca.

Silva sonhava com grandes matérias, mas quase sempre terminava a noite com duas ou três laudas, cheias de correções feitas com a caneta Bic, sobre crimes de morte perpetrados pelos chamados “pé inchado”: desempregados, biscateiros, operários sem qualificação, faxineiras, ladrões de botijões de gás, cafetões, prostitutas, pequenos traficantes, geralmente, envolvidos em rixas que acabavam em homicídios na subida das favelas do Rio. 

Nos dias de chuva, quando a quantidade de cachaça ingerida nas barraquinhas aumentava, Armando Silva tinha mais trabalho. Os textos chegavam via telefone, passados por setoristas baseados nos hospitais públicos e no Instituto Médico Legal: um monte de imbecis, analfabetos, segundo o plantonista, sabedor de antemão que o material ia direto para o lixo. 

Ou para o “Polícia em poucas linhas”, uma coluna, quatro ou cinco subtítulos em negrito. Era o máximo que podia conseguir, nos dias em que nada ou pouca coisa acontecia na cidade. 

No trabalho de varredura da cidade, o plantonista usava uma prancheta com o telefone de todas as delegacias do Rio e um espaço em branco onde deveria aparecer escrito o nome do delegado de plantão. 

O que nem sempre era fácil “por causa da porra da má vontade de quem atendia ao telefone nas delegacias”. O repórter fazia uma primeira busca e quando seu faro indicava que a matéria “podia render”, saía em busca de motorista e fotógrafo de plantão, quase sempre os mesmos naquela hora. Exceto aos domingos, quando alguém que não conhecia muito bem a cidade era escalado e irritava Silva. 

O plantonista se sentia bem no banco detrás da Rural de duas cores, percorrendo, noite alta, as ruas desertas dos subúrbios do Rio: Penha, Méier, Honório Gurgel, Paciência, Austin, saltando nos “locais” onde a polícia militar abria, rápido, caminho para a imprensa. 

A sensação, porém, mudava quando chegavam depois da concorrência. Zé Grande, o repórter de O Dia, era bem informado e gostava de se divertir deixando Silva no sal, mas o plantonista confidenciava a seus inimigos íntimos que “estava sempre de olho no filho da puta”. E quase nunca o jornal em que ele trabalhava tomava um furo.

                                             Em geral, seus textos, “apurados com todo o cuidado”, não iam para as páginas. Isso porque, quando o plantonista tirava a lauda datilografada da Remington, a edição estava fechada há algumas horas. Muitas bancas já funcionavam e os garotos que trabalhavam na madrugada tinham acabado de vender os exemplares que apanhavam na porta do jornal. Assim, a quase totalidade das matérias produzidas por ele estava destinada à lixeira mais próxima da editoria de Polícia. 


                                           A grande chance do plantonista começou a aparecer quando o general presidente, “uma boa pessoa”, segundo sua avaliação, vinha passar o fim de semana no Rio. Por via das dúvidas, o editor de política pedia um repórter para a cobertura da chegada do presidente ao aeroporto do Galeão. Uma chegada discreta sexta-feira à noite, quase em segredo, os jornais tomando pressão da ditadura por “questões de segurança nacional”.

                                        Silva sempre se informava com o pessoal da política sobre a possível vinda do general para o Rio. Uma ansiedade que o deixava mais mal-humorado ainda. Nilza, uma “mulher da vida, aposentada”, nas palavras do plantonista, que passava, de vez em quando, na sua quitinete para “um piço rápido”, é que levava a pior. Às vezes, a coisa nem começava. Silva batendo a porta na cara da mulher de coração de batom desenhado, cuidadosamente, em torno dos lábios.



                                    O plantonista tira do guarda-roupa o terno mais novo, veste, calça os sapatos de cromo alemão, gravata comprada numa loja em Botafogo. Desce os quatro andares do prédio a passos rápidos e, na rua, resolve tomar um táxi, “para não chegar suado na redação”.

                                    As onze em ponto está atazanando o velho Nepomuceno, motorista mais antigo do jornal, para que “acelere essa porra que o presidente não vai esperar”.

                                   Quando salta na entrada do Galeão, já se sente o repórter reconhecido pelo general. Que estende a mão, “boa noite” para o repórter chato, que conseguia --depois de horas de conversa-- que a segurança permitisse a aproximação.

                                 Silva percebe, de cara, que há polícia demais no aeroporto. Nota um grupo de fuzileiros navais com cassetetes de madeira. Então, procura os seguranças do presidente que conhece - “só oficiais do exército, gente de boa índole” - não encontra nenhum deles. Mas o presidente já o conhecia e isso é que importa. Sabe, pela movimentação, que o avião já está pousado. Quando o presidente passa pela porta de blindex, Silva dribla a segurança. 

                               Dá três passos, antes de ser alcançado pelo cassetete de madeira e cair em convulsões, enquanto o general tem seu trajeto um pouco desviado, para que não precise presenciar a cena: um homem caído, ensanguentado no saguão do aeroporto Santos Dumont. Alguém responde que o homem teve uma convulsão e caiu.

                               O fotógrafo Giles Serra que acompanhava Silva teve a máquina quebrada e levou dez pontos no supercílio e cinco no braço esquerdo. 

                               Armando Silva morreu dois dias depois, vítima de um infarto do miocárdio, segundo o IML.

 

 

 

Na Redação

                                    

                                    - E como é que isso vai ser resolvido?

                                       A pergunta é direta; o novo chefe da reportagem tinha chegado há poucos dias de Brasília. Havia certo desconforto porque Almino Vaz, veterano e experiente repórter, que estava de volta ao jornal, tinha a torcida dos colegas para ficar no cargo. Até porque, informalmente, já tinha assumido desde que seu antecessor, Rubens Otávio Lins, vítima de um câncer, estava definitivamente afastado.

 

                                         Na última hora, porém, a direção da casa tinha resolvido deslocar o chefe da sucursal de Brasília para a chefia da reportagem no Rio. As versões mais correntes davam conta de que Ribeiro Bastos tinha se incompatibilizado com a Casa Civil da presidência.

                                         - Alguém tem uma solução?                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

                                         Impaciência após menos de um minuto entre a primeira e a segunda pergunta. Vaz, que teoricamente estava passando o bastão, parecia curioso.

                                        - Talvez porque a rapaziada não esteja entendendo muito bem a ênfase que está sendo dada a esse caso. No passado nós mandávamos um repórter cobrir a greve, matéria de duas colunas, que só crescia se houvesse pancadaria, polícia. Essa não é a primeira greve de serventuários da Justiça.

                                           Ribeiro Bastos evitou olhar para o velho repórter.

                                            - Comigo as coisas serão diferentes. Na minha opinião o jornal deve ter uma posição clara nesses casos. Estou pensando nas pessoas que têm processos em andamento, com datas, pessoas que estão dependendo de uma decisão do Tribunal...  

 

                                         O novo chefe da reportagem vinha de baixo, estava há mais de 20 anos no jornal, concluindo uma carreira que começara no laboratório de fotografia e, curiosamente, tinha desaguado na redação. Já fotógrafo, segundo boatos que agora corriam, avançara um pouco mais ao fazer pequenos textos em matérias nas quais a direção da sucursal não via a necessidade da presença de um repórter. Isso lá pelos anos sessenta.

 

                                          Mais tarde, uma série de bem sucedidas matérias sobre obras realizadas nos governos militares, garantiu a Ribeiro Bastos o respeito e até a amizade dos coronéis, generais e civis que vicejavam no entorno do centro do poder. Com isso Bastos conseguiu abrir portas importantes durante os anos de ditadura. O jornal, graças à presença do repórter e mais tarde chefe da sucursal, já era o mais bem informado no final daqueles anos.

 

                                         O chefe da reportagem também tinha ganho prestígio por sua habilidade em lidar com as tentativas de plantar notícias feitas por gente que fingia proximidade, mas estava fora do núcleo central. Tinha aprendido a distinguir, mesmo entre os mais próximos dos generais-presidentes, quem agia nos bastidores para colocar pedras no caminho do governo. Essa lealdade feroz ao círculo de confiança fazia com que o jornal navegasse em águas tranquilas, mesmo quando a censura, no Rio, criava problemas.

 

                                                Seu prestígio entrou naturalmente em queda no governo Sarney, quando Bastos sentiu-se, apesar do peso do jornal, tratado como qualquer jornalista encarregado da cobertura do Planalto e adjacências. Mais do que isso, repórteres que vinham acompanhando de perto as novas estrelas da constelação do poder, como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, o próprio Sarney e dezenas de outros nomes da chamada Nova República, de repente atropelaram seu prestígio.

 

                                            E havia ressentimentos. O chefe da sucursal exibia durante a ditadura - exceção feita para um breve período no governo Médici, quando brigou com um coronel - uma arrogância que o afastava de gente do mesmo nível trabalhando na concorrência. Gente que agora tinha a preferências nas inconfidências, informações em off e vazamentos propositais no novo governo civil.

 

                                          O troco foi sentido pelos donos do jornal. Para contornar uma situação, sem defenestrar quem até ali tinha servido tão bem aos interesses da casa, dois repórteres de prestígio, antenados com a nova cara do governo, foram contratados. A peso de ouro, segundo comentários feitos em voz baixa na redação. Ribeiro Bastos permaneceu chefe, mas foi chamado para uma conversa e as novas estrelas passaram a discutir a pauta, todos os dias pelo telefone, com o diretor de jornalismo, no Rio.         

 

                                       Na redação também corria o boato de que Ribeiro Bastos não tinha concluído o segundo grau. Apesar disso ninguém contestava que seu texto era impecável: correto, limpo, claro. Ninguém discutia sua perspicácia na sucursal Brasília durante a ditadura, mas agora, trazido de volta para o Rio, depois de andar às turras com seus comandados, suas limitações começavam a virar folclore. Bastos queria implantar seu estilo logo de cara. Ali, na reunião convocada mais ou menos às pressas, estava tentando mostrar como acreditava que as coisas deveriam acontecer com ele na chefia.

 

                                         - Quero três repórteres. Um vai entrevistar alguns serventuários da Justiça que trabalham na Corregedoria. São funcionários também, mas dificilmente fazem greve. Muitos estão em cargos comissionados. O outro vai ao prédio do Tribunal. Lá dentro deve haver juízes que acham que o governo estadual pode não estar agindo com o rigor necessário nesse caso e, com certeza vão falar. Isso interessa; vamos ouvir a opinião dessa gente. Quero o terceiro repórter na porta do Fórum ouvindo os grevistas. Quando ele chegar com a matéria eu quero ver. Vamos escolher as entrevistas e contrabalançar com o resto do material. 

                                           O chefe da reportagem olhava pela janela. Duas barcas estavam se cruzando no meio da baia.

-                                      - Quem é que vai? E você, Almino, tem mais alguma sugestão?

                                                                                                                                           

                                          As perguntas não faziam muito sentido para a plateia formada pelo chefe interino e três repórteres convocados. Ninguém ali entendia muito o porquê da gravidade naquela reunião convocada as pressas. Os três já tinham recebido suas pautas do dia e não sabiam muito bem o que fazer com elas.

 

                                          Bastos volta a encarar a plateia. Explica que a posição jornal é contrária a essa greve e outras, que prejudiquem o contribuinte. Mas no caso particular da Justiça a coisa é mais grave.

                                           - Não se trata de mais uma greve. A direção entende que a greve é antipática, que prejudica mais as pessoas de poucos recursos. É preciso que fique bem claro que o jornal tem uma posição definida nesse caso. É tudo!

                                          

                                           Já na redação, Almino Vaz tentou amenizar as coisas, descartando qualquer comentário sobre o que tinham ouvido.

                                          - Você, Lineu que é um garoto esperto, vai ouvir os juízes.

-                                        - Tudo bem, mas será que o Bastos pode dar a dica dos interlocutores que interessam?

-                                          - O Bastos, acabou de chegar de Brasília, não conhece ninguém no Poder Judiciário do Rio. E nem eu. Então vamos, por tentativa, ouvir quem fale o que interessa. Vamos ouvir uns quatro ou cinco juízes... e equilibrar a matéria. Eu mesmo quero ver as entrevistas. O homem está desacostumado com o Rio.

                                             - Acho que ele está desacostumado com o jornalismo. - Lúcio quer saber o que faz com a pauta iniciada.

                                              - Passa essa bola pro Guilherme.

                                              - Mas o Guilherme não vai falar com os desembargadores?             

                                              - Também.

 

 

Braga

                               

                                    A duração, pouco mais do que o tempo de um flash. No primeiro momento, o encontro dos olhos: os seus com os do homem sem camisa, emoldurado de repente pela porta aberta. Olhos muito arregalados por trás dos óculos de aros grossos. Sangue abundante no peito e no canto da boca. Braços imobilizados por alguém que o mantinha de joelhos. Reconheceu na hora. Num segundo instante, em outra porta, outros olhos viram o que ele tinha visto. Olhos que se desviaram rápido.

 

                                    Respirou fundo e quando percebeu já estava no pátio da delegacia, uma velha casa de subúrbio adaptada. Nos fundos, a construção nova com quatro celas. De onde estava podia ver dois presos de bermuda sentados em colchões, ouvindo rádio, volume alto.

                                   Na velha casa, a porta de entrada, estreita, três degraus separavam a ante-sala da calçada. O escrivão, por trás da velhíssima Remington, datilografava  um pedido de material, alheio a duas mulheres que pretendiam dar queixa do irmão bêbado.

                                  Os quartos tinham sido transformados em sala do delegado, setor de vigilância, de averiguações, um espaço para o lazer – mesa de sinuca, mesa de totó – que ninguém é de ferro. Ao lado da cozinha, discreto, sem janelas, o lugar onde o repórter Hercílio Lopes, naquele momento, estava sendo torturado.

                  

                                   Entre a casa e a nova construção nos fundos, o piso era de cimento, rachado em muitos pontos, com buracos em outros. Bem no meio do pátio a enorme mangueira, cujos frutos estavam sendo apedrejados naquele instante por um inspetor e um alcagüete - que com o tempo estava se tornando policial, saindo para fazer prisões no velho camburão da DP da Penha Circular.

                                  As mangas custavam a cair e as pedras estavam batendo no telhado da casa vizinha. O delegado, braços abertos, apareceu de repente na porta dos fundos da velha casa, impediu a tentativa da derrubada das mangas verdes e chamou  por ele.

                                       - Não é preciso dizer que você conhece o cara! 

                                       Respondeu que sim com um gesto de cabeça.

                                       - Então? O que acontece agora?

                                       - Não sei; tô pouco ligando - respondeu.

                                       A resposta, um lapso de uma coragem que desconhecia.

                                       - Vamos pra minha sala.                  

                                       Seguiu o delegado. Antes que a porta fosse fechada, sentou na cadeira em frente à mesa. Braga era um velho conhecido, ansioso para aparecer nos jornais, que telefonava para a redação sempre que, segundo sua avaliação, havia alguma coisa que pudesse virar matéria nas páginas policiais.

                                          Em noventa por cento dos casos o telefone era passado para o repórter de plantão que anotava os dados e a notinha saía, em uma coluna, substituindo um atropelamento na Presidente Vargas ou um homicídio na subida do Borel. Às vezes, mais para não perder o informante qualificado, uma equipe ia até a Penha Circular, onde o delegado se mantinha fazia tempo. 

                  

                                        - Olha, a gente aqui não tem nada com isso. Parece que o cara morava aqui perto, ou o aparelho dele era por aqui, não sei muito bem... Esse pessoal diz que é do Dops, chegou com ele num chapa fria e pediu pra usar a sala...

                                        - Sei.

                    

                                        Braga baixou os olhos, tentou abrir a gaveta emperrada, desistiu, com um “porra, tem que chamar um carpinteiro” e tornou a olhar para ele.   

                                        - Como é que vai ser?

                                        - Você não devia ter deixado essa gente entrar aqui.

                                        - Porra, você deve tá ficando maluco! Fazer o quê, porra! Depois, eles disseram que vão enfiar um porte de arma e deixar o puto aqui mesmo. Solto. A gente esquece o que aconteceu e tudo certo.

                                        - Desculpe, Braga, mas eu não posso aceitar que você está acreditando nisso. Os caras...                     

                                        - E eles também sabem que você é repórter. Foi o Leo, o X-9 que contou... pra puxar o saco dos caras! Ele falou, “olha que tem jornalista aí...”

                                        - Me dá um tempo, um minuto.

                                        Saiu pela porta lateral contornou a casa, em direção ao portão. Passou meio abaixado ao lado do camburão estacionado ali há meses, o motor batido depois de uma tentativa de alcançar um Simca Chambord, com dois traficantes, na Avenida Brasil. Tinha feito a matéria, o Simca bateu de frente com um ônibus da Companhia de Transportes Coletivos: dois traficantes mortos.

                                         Passou  pelo portão; a rural estava a uns dez passos, duas rodas na calçada. Abriu a porta do carona. O fotógrafo e o motorista saíam do bar no instante em que alguém estava atendendo um chamado na freqüência do jornal. Os dois não tinham pressa.

                                          Esperou, pacientemente, que chegassem. Explicou rapidamente o que estava acontecendo, virou as costas. Segundos depois ouviu o barulho das rodas da Rural passando da calçada para a rua de paralelos, voltou andando rápido pelo mesmo trajeto.

                       

                                       Braga tinha conseguido abrir a gaveta.

                                       - Você fez o certo –  respondeu depois de ouvir que a Rural estava a caminho da redação com um recado dele. Os olhos do delegado agora examinavam um par de lápis, pretos, novos, sem ponta.  Remexeu em alguns papéis, colocados um a um no tampo da mesa, uns óculos de aros finíssimos, uma almofada de carimbo, dois envelopes empoeirados.

                                       - Toma.                         

                                        Teve que levantar da cadeira e percebeu que estava sentindo frio, apesar da temperatura de quase quarenta graus ali na Penha Circular. Os dois envelopes, com seu nome escrito errado.

                                          - Que  é isso?

                                          - Dinheiro, porra!

                                          - ...?

                                          -  Propina, caralho, sabe o que é propina! A rapaziada, seus coleguinhas, porra, tem gente que vem buscar toda semana! É dinheiro do bicho, a gente racha; você tá por fora, acho que ninguém te avisou. Agora põe essa merda no bolso pelo amor de Deus!

                                          Gesto automático, a frase não admitia hesitações.

                                          - Vou falar rápido! Eu disse aos caras que você era da casa, de confiança, entendeu? De rabo preso, entendeu? Se te segurarem vão ver os envelopes! Isso pode livrar a tua cara! Depois, já que você é metido a bom moço, joga essa merda no lixo! Ou dá pra algum mendigo!                             

                                           Ficaram ali, em silêncio, até que Braga começou a falar na prisão do assaltante que provocou a ida até a delegacia naquela noite. “Queria café?” “Claro.”

                                           - Sobre o cara que a gente prendeu, esse que vocês fotografaram... eu esqueci de dizer que ele teve participação naquele  assalto em Campo Grande, mês passado. Ele, o Olívia Palito, um tal de Sérvulo, que tá foragido, o Bira, que morreu mês passado e um tal de Bodão. Esse Bodão tinha treze homicídios! Já pensou? Treze homicídios aos dezenove anos!

                                           - Tá morto. Eu...

                                           - Eu sei que tá morto.

                                           - ... tinha feito matéria com ele no ano passado. O pessoal da DP de Madureira pediu pra eu identificar o corpo. Por causa daquela matéria.

                                           - Foi na Dutra, não é isso?

                                           - O corpo estava dentro de um saco plástico do lado da linha do trem em Madureira, a uns duzentos metros da passarela.

                                           - Sei, mas mataram ele na Dutra.

                                           - Não sei, a gente não deu continuidade.

                                           - Foi, foi na Dutra, ele foi morto por um tal de Ratão, lembra do Ratão?

                                           - Não tenho a menor idéia. O jornal não tem espaço pra bandido pé-de-chinelo.

                                           - Não era pé-de-chinelo não! - O dedo fazendo sinais frenéticos, Braga quase se levantando da cadeira. - Não era pé-de-chinelo não! Mexia com maconha, dava proteção a ponto de bicho, deu um tiro num PM! A gente quase segurou ele...                                 

                                            De repente absorto, olhando através dele para o pátio com a mangueira.                                

                                            - O Valter, se lembra dele? Deu mole, ficou com medo, o cara ali no bar, aquele um pouco antes da esquina... No que chegou aqui pra avisar, o cara se mandou. De moto.                                   

                                           Tempo passando, começou  ver que o delegado estava ficando ainda mais nervoso, tentando abrir e fechar a gaveta, torcendo as mãos. Estava nervoso também?   Tinha se acalmado quando um detetive entrou na sala e cochichou alguma coisa. Braga levantou rápido.                                   

                                        Enquanto esperava, ficou imaginando a Rural sendo estacionada no pátio, o fotógrafo subindo pela escada, dois, três degraus de cada vez, abrindo a porta da redação, identificando quem mandava mais naquele momento, contando o que tinha acontecido, o pessoal se levantando, se aproximando, alguém indo direto para o telefone, ligar para o dono do jornal.

                                       “Ainda não”. A imagem da Rural percorrendo a Rua São Luiz Gonzaga, ou fazendo um trajeto alternativo, já a caminho da Avenida Brasil, pareceu mais provável.                                        

                                        Braga voltou depois dele ter examinado os envelopes. Tinha um bom dinheiro ali dentro. Cada um com pelo menos um salário.

                                        - Os caras se mandaram – o rosto parecia acinzentado – mas eu tive que dar o teu nome.

                                         Ficaram ali durante a eternidade de um ou dois minutos, Braga espiando a mangueira, ele olhando o piso da sala, muitos tacos soltos. Naquele momento pensou em tropeções e praga. O próprio Braga devia tropeçar muito por ali.

                                          - Não teve jeito, ia fazer o quê?

                                          - Sei, não teve jeito.

                                          - Mas olha, com o peso do teu jornal...

                                          - Acho que nem você acredita nisso, Braga.

                                          -  Olha aqui, se você está preocupado... eu mando o Jorge te levar no camburão...até a porta do jornal.

                                           - Primeiro, eu acho que os caras não vão estar me cercando, né? Depois, se resolverem me segurar, isso vai acontecer mais tarde; outro dia.

                                             - É o melhor que eu posso fazer.

                                             - Sei, eu tomo um táxi.

                                              Chegada ao jornal, sem sobressaltos; pediu que o motorista passasse antes pela porta, desse uma volta no quarteirão. Nenhum carro estranho, nada de diferente. A Rural já devia estar de novo na rua. Zé Grande correndo atrás de algum acidente, um encontro de cadáver na zona sul, ou simplesmente zanzando pelo Largo do Machado com o carro do jornal, ou passando na porta do puteiro da Rua Alice. Enquanto isso o estagiário – bem avisado para entrar em contato com ele – checava delegacias, PM, bombeiros, talvez meio apavorado com as recomendações do Zé.

                                             Sentiu uma espécie de ternura, imaginado o repórter, mais de um metro e oitenta, talvez sentado agora na lanchonete onde, segundo ele, comia-se a melhor fatia de pizza da cidade.   

                                              Saiu do elevador, atravessou o corredor bem iluminado e silencioso, reparando pela primeira vez que as paredes não terminavam num rodapé, apenas mudavam de cor: o azul bem claro ficando muito escuro a dez centímetros do chão. Abriu a porta de vaivém, entrou na redação.

                                               O estagiário ao telefone, um contínuo lendo uma lauda desamassada. Em pé, aparentemente pronto para sair, terno vestido, o jornal embaixo do braço, o editor da página de polícia. Esperando por ele, é claro.

                                                -  Quem era o jornalista? Você não deu o nome, o fotógrafo não sabia quem era!

                                                - O Lopes, aquele que trabalhou aqui.

                                                  - O Caldas acha melhor você não ir  pra casa. Amanhã ele vai falar com alguém do Dops, pra ver como é que as coisas ficam. Caldas, diretor de redação tinha sido avisado. Ele mesmo reservou um quarto no Hotel Ipanema. Fica por lá e amanhã telefona.

              

                                                    Na manhã do dia seguinte acordou meio porrado, a garrafa de vodca pela metade na mesinha de cabeceira.

 

Barbacena

                           

 - Me dá um cigarro? Voz engrolada quase inaudível, suplicante.                                   

                                       A resposta, um safanão, meio tapa, meio soco desajeitado, joga o rapaz, gemendo, no chão. Um gemido baixo, conformado, como se a agressão fosse alguma coisa já esperada.

                                       Talvez achasse que aquilo era só a sequencia normal de outros socos, chutes e pauladas que, dois dias antes, tinham produzido ferimentos abertos, sangrando nas canelas inchadas e um olho desaparecido no arroxeado disforme do lado direito do rosto. Onde, um segundo antes, estivera pousada a mosca azul-metálico. O “olha pra mim seu puto!” vem a seguir, antes que consiga se interpor.

 

                                         Um passo e fica entre os dois, olhando dentro dos olhos do fotógrafo, a respiração acelerada.                                      

 

                                       - Vai fazer merda aqui dentro? 

                                         Nicácio baixa a rolleiflex e os dois ficam se encarando, olho no olho, um ou dois infinitos segundos, até que o fotógrafo recue um passo e aponte de novo a câmera para o que deve ser seu objetivo. Em silêncio.

                                         - Vai fotografar o cara nesse estado!? Então se segura, porra!

                                        

                                         Rui Nicácio era bem mais velho. E tinha fama de não se segurar muito bem em situações como aquela. Era a primeira vez que trabalhavam juntos, mas havia antecedentes.

 

                                        Deu um refresco, olhou para fora da cela: corredor estreito, uma porta aberta, a ponta da mesa do delegado. Ouviu vozes. Um sargento da polícia militar mineira estava no comando naquela madrugada fria e aparentemente não dera maior importância ao rápido bate-boca.

 

                                          O rapaz na cela da delegacia de Barbacena estava preso sob a acusação de ter matado uma menina de dez anos, um crime que a polícia estava relacionando com outros, dois cometidos em circunstâncias parecidas: estupros seguidos de morte, as vítimas esfaqueadas inúmeras vezes. O encontro do corpo nu - cortes profundos no rosto - agora no necrotério - tinha traumatizado de vez a cidade onde tudo estava acontecendo.

 

                                          Não tinham chegado a tempo de acompanhar a tentativa de invasão do posto de saúde, para onde o rapaz tinha sido levado, depois que uma guarnição da polícia civil de Belo Horizonte, que estava ali por acaso, conseguira evitar o linchamento. A menina fora morta dois dias antes, por volta das sete da manhã, num atalho que usava para chegar à escola. O criminoso, segundo vizinhos que já desconfiavam do comportamento do rapaz, tinha sido encontrado ainda com o sangue da vítima nas mãos, desmaiado, a poucos metros do local.

 

                            Tinha ficado mais ou menos impassível diante da choradeira da mãe que soubera, pela rádio local, da presença de um jornalista do Rio na cidade. A mulher caminhara duas horas até o centro de Barbacena, levando vidros e receitas médicas, tentando dizer que o filho era doente, não sabia o que fazia, “pelo amor de Deus, moço, não deixem que matem ele, podem até levar ele pro manicômio, mas ele não sabe o que faz quando sente essa coisa. Mas ele nunca ameaçou ninguém, nunca magoou ninguém, só fica assim estrebuchando, depois cai em qualquer canto e custa muito tempo pra levantar”.

 

                            Agora, ali naquela cela, ouvindo os repentinos gritos de outro preso com dores no estômago, está um pouco arrependido de não ter ouvido com mais atenção as palavras da mulher. E começa a achar que aquele rapaz de sandália havaiana no pé esquerdo – a outra com certeza perdida no quase linchamento – possivelmente é vítima do ódio cego, filho do medo dos moradores da cidade abalada, de repente, por três mortes em série. Quem poderia saber se entre os algozes do rapaz não estava o verdadeiro assassino?        

 

                              Acha a frase razoável para um romance policial, vê a mãe aflita espiando lá do fim do corredor e pede ao policial que abra a cela. Nicácio guarda a câmera. A mulher espera por eles, ainda com as receitas e os vidros de remédio. Faz um sinal para que ela o acompanhe. Faz frio do lado de fora da delegacia e se arrepende de ter deixado o paletó no banco de trás da Rural, estacionada do outro lado da praça por recomendação da polícia, onde o motorista agora dorme com os vidros fechados.

                              Nicácio começa a tirar de novo a máquina de dentro da bolsa para bater outras fotos da mulher. As primeiras, antes de entrarem na cela, tinham sido feitas com visível má vontade.

                              Suspira um pouco mais alto do que desejaria naquele silêncio de cidade do interior e resolve andar até o bar, onde os últimos curiosos estão bebendo cachaça, à espera de alguma novidade.  A mãe do preso fica para trás, muda, remédios e receitas inúteis. Para, faz um gesto pedindo que ela se aproxime.               

           

                             Começa a perguntar, agora calmo, qual era a doença do rapaz. As respostas, atropeladas, entrecortadas por apelos (ele é doente, moço, mas nunca fez mal a ninguém, juro! passa muito mal, muito mal mesmo, quase morre, a gente tem que puxar a língua dele pra fora senão fica todo roxo!) agora produzem um efeito que ele acha indesejável pelo menos para quem deve se manter distante desse tipo de emoção, com algumas doses de puro cinismo no bolso. Mas nem sempre se consegue. Sente-se mais fraco ainda quando vê que a mulher está com o outro pé da sandália e imagina um policial qualquer impedindo que ela pudesse entregar para o filho preso.

                                A mulher continua falando. Anota cada detalhe, resolve que vai passar cada detalhe por telefone, para quem estiver de plantão na redação. E acha que talvez fique na cidade para tentar saber mais alguma coisa sobre aquelas mortes e o quase linchamento. Nesse momento, vê que porta do bar baixa, o barulho rompendo a noite silenciosa.  

                             Desperta, duas ou três horas mais tarde, com o barulho das rodas do trem e descobre que o quarto do hotel é um tipo de porão a pouco mais de um metro da linha de trem. Um cargueiro, possivelmente com minério de ferro, passa vagaroso e interminável, provocando um terremoto. O copo, deixado na ponta da mesinha de cabeceira, cai no chão. 

                              Levanta, coloca o paletó. Está se sentindo sujo, mas o banheiro do hotel desencoraja o banho. Sai. Na portaria, o vigia noturno, dorme na cadeira, o cobertor por cima do corpo, só a cabeça de fora. Abre a porta e vê que Nicácio vem atrás dele. Imagina que vai se aporrinhar. Mas o fotógrafo também sofre de insônia e só quer mesmo era contar sua história.

                             Ex-jogador de futebol, clubes do interior paulista, antes de se tornar fotógrafo, tinha ralado um tempo no laboratório, revelando o trabalho dos outros e levando a tira de cópias em 35 mm para que os editores pudessem escolher a que ia para a página. Nessas incursões na redação, tinha feito amizade com o pessoal do esporte – um ou outro repórter tinha ouvido falar na passagem dele pelo São José dos Pinhais – e com esse aval conseguira uma chance, primeiro fotografando treinos do meio de semana.

                                      Mais tarde, já dominando o uso da grande angular, passou a cobrir os jogos de fim de semana no gramado do Maracanã. Mas uma discussão com o editor de esportes, da qual tinha se arrependido e pedido desculpas, e fora remetido para o trabalho duro na editoria de polícia. Mas não se importava, queria continuar fotografando o resto da vida, se pudesse. A fama de encrenqueiro veio junto, “mas não era nada disso”. Bateu no ombro dele e apontou o botequim do outro lado da rua. A porta de aço de outro botequim estava sendo aberta pelo dono.                                               

-         Vai de café?

-         Não, mas quero te avisar de uma coisa: vamos ficar por aqui hoje, talvez amanhã.

                                              

                                   A lua, cheia naquele amanhecer, iluminava o céu das Gerais.

 

O Menino Mágico

 

               A brisa, mesmo quente, é um alívio para o calor de mais de quarenta graus e mantém no alto a pipa, vermelha, bambu, papel fino, em contraste com o céu azul, sem nuvens.

                A temperatura alta da tarde faz o suor escorrer do pescoço para o peito, marcando a camisa, enquanto aceita o convite para sentar na sombra da mangueira enorme, único lugar suportável sob o sol na zona rural de Magé. Abel, o dono do sítio, também olha para o céu e a pipa. 

                                 - O garoto era bom, um menino bom mesmo. Educado, respeitador dos mais velhos... Eu não sei como que pode... se é que foi ele mesmo, que... até hoje, olha, não tenho certeza, e meu coração fica apertado assim, quando eu penso nisso.

                                        Os olhos já são normalmente vermelhos. Olhos de quem trabalha duro na roça, capinando mato, que cresce veloz, todo dia, mais ainda no verão, tirando a força dos pés de mandioca e de inhame, que ele cuida “com a ajuda de dois filhos e um meeiro”.

                                         - O senhor podia me contar exatamente o que aconteceu?

 

                                         Naquele momento os olhos estão ainda mais vermelhos. Ou seria só impressão?

                                         - Naquele dia, assim pela tardinha, o sol desaparecendo, ali atrás daquele morro e de repente a casa do meu filho, Júlio, aquele ali...

                                         Aponta para o rapaz de camisa aberta que fuma, tranquilo, junto do que parece ser um poço artesiano.

                                         - ... a casa daquele meu filho Júlio ali começou a arder de fogo, do lado de fora!

                                          Madeira enegrecida em parte da janela e nos caibros que sustentavam as telhas da varanda.

                                          - Tava todo mundo em casa, todo mundo correu com os baldes, as latas, o fogo foi apagado. Então, começou o incêndio na minha casa. A gente toda que tinha chegado, uns vizinhos, todo mundo ficou assustado, assustado sem entender! Mas os baldes já estavam nas mãos e todo mundo correu, eu já desconfiado que era coisa do menino...

                                  - Desconfiado como, seu Abel?

                                  - Não sei, alguma coisa que me bateu assim, alguma coisa que eu ouvi e não quis saber, alguma coisa que eu, desculpe, nem sei explicar, uma coisa no peito... Mas olhe que eu não disse nada a ninguém, guardei pra mim só.

                                    - E o menino, seu Abel? Como é que ele se portou nessa hora?

                                   - O menino Romualdo também correu logo pra ajudar. Pegou uma lata, correu pro poço d´água, veio ajudar a apagar o incêndio!

                                    - Entendo...

                                    - Quando começamos a botar água na parede, meu filho Julio tinha conseguido desenrolar a mangueira do poço, que a gente usa pra molhar o inhame e a mandioca, foi que o fogo pegou na outra casa, aquela lá do meu outro filho, o Júnior! Também pegou fogo! A gente não sabia pra onde correr, a minha mulher que sofre dos nervos caiu ali mesmo perto do tanque. A gente ficou mais de uma hora jogando água nas três casas. Com a minha não aconteceu quase nada, mas a do meu filho Júlio tá imprestável. Pode ver! Qualquer hora vai no chão. Vamos dar um tempo, pra comprar o material de construção e ajeitar outra pra ele. Enquanto isso, ele, a mulher dele e as crianças tão dormindo lá em casa mesmo”.   

                              - E o garoto?

                              - O pessoal começou a falar, a pegar no pé, que aquilo não se explicava, que, quem sabe, o fogo podia voltar e uma coisa foi levando à outra e a minha mulher também ficou com medo, embora ela gostasse muito mesmo do menino Romualdo. Eu também fiquei triste, muito triste, mas levei o menino, dia seguinte de volta, pro quartel dos bombeiros. A gente aqui em casa já tava sabendo das histórias de antes... tava sabendo, eu disse pra mulher, quando ela começou a pegar muito no meu pé. A gente tava sabendo, mas não acreditava muito. Que tinha acontecido coisa estranha nas casas onde o menino tinha ficado. Eu acreditava, mas não acreditava e o menino era bom, educado. Mas não teve jeito mesmo, levei ele pro bombeiro.

                                Há tempos, Jack tinha aprendido a não compartilhar o sentimento de quem entrevistava. Tinha aprendido a não se importar, a tentar não sentir nada diante de choros, súplicas, reclamos de inocência. O plantador de mandioca tinha ficado mesmo triste, ou estava apenas simulando?

                                 - Eu tive pena, muita pena, porque ele era um menino bom, um menino bom mesmo. Estava se acostumando com a gente, brincava com os netos, corria pelo sítio com os cachorros. E era educado, descia lá do morro, pra pedir se podia comer goiaba, quando chegava lá, de volta, o resto da molecada já tinha acabado com tudo.

                                - Disseram que dali ele foi pra um quartel do exército, no Rio. O senhor tem essa informação?

                                 - O bombeiro, que mora aqui perto, falou que os soldados vieram buscar ele num jipe.

                                  - Esse bombeiro não sabe pra que quartel o garoto foi levado?

                                  - Só perguntando a ele.

                                  - O senhor, por acaso tem uma foto do menino?

                                   - Acho que tá lá no armário, escondida... Se é que minha mulher não achou e deu um fim. Ela gostava muito do menino, mas então ficou com tanto medo que cismou até de queimar a roupa que ele andou usando pra ir à igreja, quando morava aqui com a gente. Roupa nova que eu tinha comprado e podia servir pros netos. Mas ela não queria saber, queimou tudo, lá no meio do mato e ainda enterrou as cinzas. O pastor dela, que eu sou da igreja católica, também achou que não era bom descuidar, que o menino podia ter parte com o demo, mas eu não acredito nisso.

                                    Abel levanta, ágil, do banco tosco e vai, ligeiramente manco, em direção aos fundos da casa.                                   

 

                                    Tinham custado a achar o sítio, rodando pela área rural de Magé, maltratando o Gol seminovo em ruas de saibro, esburacadas, que se transformavam em picadas de burro, abrindo cancelas, perguntando aqui e ali, na porta dos botecos, nas igrejas de crentes, até encontrar alguém que sabia onde seu Abel Rodrigues e a família moravam.

                                      A história do menino, capaz de proezas estranhas como incendiar três casas ao mesmo tempo, tinha chegado à redação através do correspondente do jornal em Magé, Joaquim Terroso.

                                     Terroso era arrogante e gostava de se vangloriar de ter sido “o primeiro repórter” a comunicar a queda de um avião, muitos anos atrás, que já passara “pelo espaço aéreo da cidade com uma das turbinas pegando fogo”. A redação tinha sido comunicada por ele minutos depois, mas como ninguém dava importância a setorista, o aviso foi esquecido até que minutos mais tarde um avião de carga caiu na baía de Guanabara. Naquela noite, Joaquim Terroso fez de táxi o trajeto entre Magé e o centro do Rio, para levar duas laudas de texto com o depoimento pessoal e um filme, meio velado, com a foto do que seria o avião pegando fogo em pleno voo “sobre o espaço aéreo de Magé”. As duas laudas se transformaram em dez linhas legíveis de um texto impessoal, mas seu nome apareceu na relação dos repórteres que cobriram o acidente.

                                       Terroso tinha sumido com um dos filhos e alguns netos do agricultor no caminho que levava à parte de cima do sítio, o que era um alívio, já que sua arrogância, sua maneira de se dirigir a pessoas mais simples como Abel, já tinha provocado um atrito entre os dois, um ou dois meses antes. Mas a história, desdenhada pela chefia de reportagem, e que ele tivera a paciência de ouvir, num longo telefonema na sexta-feira à noite, quando já estava de saída, podia render alguma coisa.  Pelo menos, essa era a sua avaliação naquele momento.

                                   Abel volta minutos depois, com a foto no bolso e um dedo sobre os lábios, indicando que ele deveria ficar calado. Atrás dele, a mulher vem com dois cafezinhos em canecas de lata. Agradece, espera que a mulher limpe a mão no avental antes de apertar a que ele tinha estendido, “tudo bem com a senhora?” Toma o café, olhando uma segunda pipa que se aproxima para o combate, as linhas certamente com cerol.  

                                     Quando a mulher desaparece na porta dos fundos da casa, Abel tira a foto do bolso e aponta para o menino Romualdo, negro, entre outro menino, branco, e uma adolescente.

                                     - Os dois são filhos do comerciante que tinha hospedado o menino antes dele vir pra cá. Ficou com ele, até o dia em que algumas coisas da loja, material de limpeza, uns plásticos, umas coleiras de cachorro, segundo ele contou, começaram a sair das prateleiras e, voando, voando mesmo, foram bater na porta de madeira que dava pra casa, nos fundos, onde ele e a família dele estavam vendo televisão.

                                     O menino Romualdo, Abel conclui, era mesmo muito bom, coitado, porque depois desse dia, outra pessoa tinha resolvido dar abrigo a ele. De novo tudo tinha corrido bem, durante uma semana, até que, em plena tarde de sol, umas panelas começaram a chacoalhar na cozinha. A dona da casa, que vivia com a filha que trabalhava no bar do outro lado da rua, ficou apavorada. Alguém chamou os bombeiros, mas quando a guarnição chegou estava tudo em silêncio, as panelas no lugar.

                                      O menino Romualdo tinha ido parar no quartel dos bombeiros. Passara um mês por lá, brincando, usando os bonés e ganhando roupa usada dos bombeiros que tinham filhos do tamanho dele. Comia no refeitório, tomava conta de dois ou três cachorros que também moravam por ali, passava os fins de semana na casa do comandante. Bom, quando as férias escolares terminaram, o juiz aqui da comarca mandou que o garoto fosse matriculado numa escola pública do município.

                                      - Aí o comandante dos bombeiros também mudou de quartel e o novo, que ficou no lugar dele, não quis saber do garoto. Então, esse rapaz que mora aqui perto perguntou se eu não podia ficar com ele, que tinha espaço e criançada na minha casa. Eu pensei comigo que minha mulher não ia querer, mas ela quis. Fomos buscar o menino no carro do meu cunhado. Ele chegou meio triste, que gostava de brincar lá no quartel, mas se acostumou logo com a gente daqui.

                                    Abel respira fundo. Está calmo, pergunta se ele quer outro cafezinho e conta que ele e os quatro filhos tinham comprado “o direito do sítio” há mais de dez anos, quando decidiram deixar Cataguazes, Minas Gerais, mas “pertinho daqui do Rio”, para morar em Magé, o lugar mais próximo do sonho que o dinheiro ganho com as plantações de legumes permitiu que chegassem. Dois dos filhos já tinham voltado, não para Cataguazes, mas para Belo Horizonte.

                                               Tudo ali era simples como a sandália havaiana, e camiseta rota com que tinha sido recebido. Abel viu que ele suava e disse que ia pedir que a mulher fizesse “um suco de melancia passado no pano”. Disse que não era necessário, que estava acostumado ao calor, que no centro do Rio nem aquela brisa soprava. Abel insistiu, explicando que “tem muita melancia espalhada pela parte alta do terreno, que nasce sem a gente ver e que ele usava para alimentar os porcos. Queria dar uma olhada nos bichos”. “Não, talvez outro dia com mais calma”.

 

                                                  Joaquim Terroso tinha voltado com os garotos e o filho de Abel. Trazia um saco cheio de aipim e inhame. Uma melancia vinha embrulhada num jornal.

 

Balsa na Neblina

 

                                    Percebe, meio sonolento, que a balsa está sendo engolida pela neblina. Recosta-se no banco de trás do carro, sabendo que não vai conseguir dormir. Queria chegar logo, mas esse querer espantava o sono. A balsa que tinha tirado da ilha a equipe do jornal – ele, Paulo Sérgio, fotógrafo e Adoniran, motorista – navegava, cada vez mais lenta, em direção ao continente.

                               

                                   O comandante, ou lá o que fosse, parecia amedrontado pela neblina. A noite tinha chegado mais cedo e o apito, que cortava a escuridão e o silêncio, parecia um grito de desespero. O fotógrafo tinha saído do carro.

 

                                     - Tá encagaçado, foi ajudar o motorista da balsa – brinca Adoniran Três Peixes. O “Três Peixes”, inventado numa pescaria compartilhada com outros fotógrafos, motoristas e contínuos do jornal, num rio da Baixada. O motorista tinha sido o único a conseguir matar três peixes. No caso, segundo os companheiros de pescaria, “três cascudos bem safados, de menos de 10 centímetros”. Adoniran não estava nem aí, mas até a chefia de reportagem tinha adotado o apelido. Três Peixes também disfarça seu medo fingindo que dorme, sabendo que a travessia ainda vai durar algum tempo. 

                                       A ida até aquela ilha meio remota tinha sido em vão. A tal “loura assassinada numa praia deserta”, não tinha o menor interesse para os leitores de um jornal produzido para a classe média. O que na pauta parecia render, não passava de uma história mal apurada. “Ninguém se interessa por crime de pé-de-chinelo”, tinha ouvido nos primeiros dias de trabalho. Talvez rendesse uma notinha de dez linhas; por isso tinha anotado nomes, hora, motivação...

                                       A loura que um pauteiro - mais acostumado com as matérias de “cidade”: parques e jardins, feira de livros, mudanças no trânsito do centro, melhorias no Aterro do Flamengo - tinha sacado na ilha não passava de uma pobre menina, de dentes estragados. E os cabelos eram oxigenados. Matéria envolvendo gente pobre, muito pobre no caso, gente que não faz o gênero dos leitores do jornal; meia lauda no máximo. O noivo, assassino confesso, viajava agora na caçapa do camburão, ao lado do carro de reportagem, balançando na balsa - um pescador ciumento que não gostava das viagens da menina oxigenada ao continente. E que tinha enlouquecido depois da tentativa dela de desfazer o noivado.

                                           Os dois pobres diabos, Cineli Nicanor (branca, 19 anos, do lar) e José do Carmo (branco, 22 anos, pescador) de vida dura, tinham nascido na ilha.                                        E eram parentes distantes. “Se é que existiam parentes distantes”, pensa, lembrando, com uma ponta de remorso, da morte recente de um primo, para quem era “o jornalista”.

                                              Parentesco exibido com orgulho nas reuniões entre engenheiros que trabalhavam no município do Rio. Tinha ficado menos de dez minutos numa festa preparada, dias antes, que um infarto fulminante o matasse na escada do prédio onde morava. Só mais tarde, tinha descoberto que a festa, da qual saíra pretextando “estar cheio de trabalho aquela noite”, tinha sido preparada para ele.

 

                                       Na balsa segue também o rabecão com o corpo da moça para ser autopsiado no IML. Imaginou o pouco caso do legista na autópsia de corpos como aquele. E também o impacto sobre a família de um cadáver cheio de cortes e remendos mal feitos na mesa do necrotério. “Matéria de merda” tinha ouvido Paulo Sérgio praguejar baixo enquanto limpava com um pano molhado, emprestado pela família, o rosto da moça para a “foto de arquivo”, depois do “local” ter sido desarrumado pelo perito.

 

                                     - “Com certeza”, concordou baixinho, as palavras apagadas pelo bater suave das ondas no casco da balsa.

 

                                    A balsa fica algum tempo quase parada no meio da nuvem, o motor desligado. Vozes nervosas, amedrontadas, chegam até o carro de reportagem. “Não adianta nada essa porra de apito”. O motorista, (acordado?) mais assustado agora, segura o volante.  Não responde. Não adianta ficar pensando na possibilidade de um acidente aquela altura do campeonato.

                                     - Essa bosta vai demorar umas quatro horas pra chegar no continente - Três Peixes finge que está irritado.

                                      - E daí?

                                      - Daí que vai ser difícil encontrar um lugar aberto pra gente jantar, porra!

                                    

                                       Então, quase que uma surpresa, a luzes do cais aparecem, bem mais próximas do que poderia imaginar minutos atrás. Adoniran Três Peixes abre o sorriso de alívio. A neblina desapareceu e sem sair do carro os dois viram Paulo Sérgio conversando com a mulher bonita que tinham encontrado na ilha.

                                      - Tá se dando bem, o puto - aponta Três Peixes. - Será que tem a porra de um banheiro por aí?  

 

        

 

 

 

No Cerrado 


- Acabei de ver um lobo Guaraná.

- É guará, porra!

O diálogo entre o motorista Salvador (Salvador Caso para os íntimos) e o fotógrafo Darílio Souza acontecia numa estrada em pleno cerrado no Mato Grosso. A estrada, era fevereiro, produzia uma nuvem de poeira vermelha. Poeira consistente, pesada. Estavam tecnicamente perdidos e Jack, na dúvida de quem seria a culpa.

 

 A Blazer estava com a gasolina a meio tanque e o GPS quebrado. Jack xingou mentalmente o chefe da reportagem, que escalara o velho Salvador - dito “Caso” porque tinha a mania de contar que estava tendo um “caso” com mulheres, algumas moradoras de prédios próximos ao jornal. E repetia as histórias à exaustão. 

Ou seria ele mesmo, Jack, o culpado? Depois da entrevista com o fazendeiro sobre a queda na produção de carne (uma pauta furada que tinha como objetivo criticar a política do governo Lula para ao agronegócio) tinha se distraído com a gravação de outra história: Reubem Mattos, dono de 13 mil cabeças de gado jurava que um lobisomem rondava a propriedade nas noites de lua cheia. E sempre levava o bezerro mais novo.

- Se o dia é sexta, 13, então não falha – tinha contado no final da entrevista. – E gosta de carne de vitela.

Jack usou o MP3 reserva para gravar a conversa e como o próximo entrevistado estava a pouco mais de 60 quilômetros dali, pensou se a história podia estar espalhada pela região. Então, ao invés de prestar atenção no trajeto, ficou ouvindo a gravação.

 

O fazendeiro tinha certeza absoluta do lobisomem e até mandara chamar uns seis ou sete empregados para corroborar a história. Ninguém contestou, era mais ou menos óbvio, e Jack desligou o MP3, meio entediado, e seguiu Mattos até a cozinha para o último café.

- O penúltimo ou nem isso. O último vai ser no dia da morte e eu espero viver mais cem anos aqui no Cerrado. 

Reubem Mattos ergueu a xícara na imitação do gesto de um brinde. Jack fez o mesmo, bebeu o resto do café e seguiu em direção a Blazer. Nem chegou a perceber que Salvador tinha pego a direita no primeiro entroncamento, e dobrado em outra estrada vicinal, o que não tinha nada a ver com o trajeto. E só vinte minutos mais tarde, ele e Darílio tinham se dado conta de que estavam perdidos. Voltar era preciso. Não antes, é claro, de uma discussão acalorada entre fotógrafo e motorista.



Salvador Caso, na avaliação de Jack, devia ter entre 60 e 65 anos, mais ou menos. Ainda era o melhor motorista para as ruas do Rio, em plena era do GPS. Conhecia cada praça do subúrbio mais distante. E superava as dicas do satélite quando se tratava de mão e contramão.

 

Era bom também na Baixada Fluminense e já viajara, a serviço, por muitas rotas de Minas, São Paulo e Espírito Santo. Ficou sabendo da pauta sobre queda na produção de carne devido à escassez de financiamento, que levaria uma semana entre São Paulo e o Mato Grosso, e pediu para ser o piloto da equipe.

 (As diárias nessas viagens podiam ser superfaturadas pelas equipes, com notas fiscais falsas emitidas por donos de hotéis de quinta categoria e a rapaziada corria atrás). O chefe da reportagem, Murilo Alceu, era um velho sabedor dessas práticas e tinha sido condescendente com o pedido do veterano motorista. Salvador já havia matado a sogra – era a décima morte da velhinha, a primeira, mas também não real, tendo acontecido em 1965, diziam as péssimas línguas que vicejavam na redação. 

Salvador Caso já havia matado a sogra uma semana atrás, pra pegar um adiantamento, a mais e estava duro de novo, segundo relato a Alceu. A viagem podia aliviar um pouco a barra dele. Agora, sob o sol do Cerrado, a consequência: Caso tinha se atrapalhado no trajeto e nem Jack nem Darílio tinham percebido.

E só admitiu o engano depois de rodarem mais de 20 quilômetros sem encontrar o amontoado de casebres entre os quais o armazém que vendia de tudo e servia, no balcão, uma “cachacinha encantadora”. ”Encantadora”, todo mundo sabia, era a definição do motorista para qualquer aguardente nunca provada antes. ”E a Lei Seca que fosse pro cacete”, Salvador se irritava. Mas nesse caso especifico, a qualidade tinha sido testada pela equipe na ida. Jack e Darílío também tinham aprovado no ato. 

A estrada era estreita, com valões de ambos os lados, o que dificultou a manobra da Blazer, no meio da poeirada. Jack ainda ponderou que podiam esperar a poeira baixar, mas Salvador Caso tinha ficado de mau humor e, se não fosse o ar refrigerado ligado e, consequentemente, as janelas fechadas, teriam mudado de cor: do amarelo redação para o vermelho urucum da estrada.


Nova parada para a cachacinha encantadora, Darílio levando dois litros “pra rapaziada lá de casa provar” e, rumo certo, comprovado pelo dono do armazém, seguindo sempre em frente em direção à próxima fazenda.

O proprietário de 50 mil cabeças não tinha queixas, “o financiamento era bom, adiantava as coisas pra gente que vive do gado”, mas pôde ser induzido a dar as declarações, no gravador, que Jack precisava. Bastou lembrar que o financiamento tinha tudo a ver com o PT, partido que promove invasão de fazendas e coisa e tal... Eram três da tarde, estavam duas horas atrasados em relação ao horário marcado pelo produtor da matéria e os três estavam mortos de fome. 

O fazendeiro fez providenciar um almoço à base de peixe de rio (“comprado por ali mesmo...”) e Jack imaginou que o pecado da gula era uma coisa tangível, embora ele, pessoalmente, estivesse pouco se lixando para os deuses judaico-cristãos e quaisquer outros de plantão no século 21.

Uma rede foi oferecia à equipe por uma mulher de traços indígenas e idade indefinida. As sete, Jack pulou da rede numa busca frenética pelo banheiro mais perto e foi informado de que a gordura de peixe podia, eventualmente, produzir efeitos daquele gênero.

 

 Antes de saírem, os últimos clarões vermelhos colorindo as distâncias do Cerrado, Mariano Seta, o fazendeiro das 50 mil cabeças, confirmou a história do lobisomem que roubava bezerros novos na lua cheia. 

- Eu não vi - disse - mas a peãozada já até se acostumou com a algazarra que o bicho faz.

- E ninguém faz nada, ninguém dá um tiro pro alto?

- A maioria do pessoal morre de medo. Eu vou até o pasto, com uns dois ou três cagões armados, mas nessa hora o bicho já tá longe.

Tinham chegado ao asfalto por volta de meia-noite, quando se lembraram que era sexta-feira. Darílio, dias depois, contou na redação que sentiu um frio na espinha quando Salvador parou para dar carona a um velho trabalhador, enxada no ombro, que “tinha perdido o ônibus que passava por ali as dez”.
 


 

No Calor da Noite

 

                                    Baixava na Mem de Sá, Lapa, depois que as coisas se acalmavam na editoria de polícia e só o pessoal de plantão na madrugada – um repórter, um estagiário e dois fotógrafos - ficavam na redação espionando a cidade, antenados com delegacias, PM, Bombeiros: a agonia quase certa dos acidentes violentos de trânsito, o encontro de corpos varados de balas em becos de favelas, matagais da Baixada ou junto aos trilhos da Central do Brasil. Eventualmente, a polícia preferia a madrugada para invadir um morro no subúrbio. Matérias e fotos raramente saíam, porque aquela altura do campeonato a edição do dia seguinte já estava fechada.

 

                                   Noite agitada na redação depois da morte do general, ex-presidente, num choque de aviões. Mas ficou alheio ao vaivém dos repórteres especializados, ao brotar de notícias no telex, com a chegada do dono do jornal, presença rara na redação,  ainda mais à noite.

 

                                   Tinha dado duro no desastre com o Simca Chambord no viaduto de Benfica - dois homens (não identificados, suspeitos de qualquer coisa?) mortos – no assassinato por estrangulamento de uma velhinha no Sampaio – a Rural do jornal tinha sido usada para levar o detetive até a casa do casal de assassinos, presos três horas mais tarde – e no choque de um caminhão contra um pilar de viaduto na Avenida Brasil, na altura de Manguinhos – um morto. 

 

                               A primeira matéria tinha virado texto legenda, com foto do Chambord esmagado pelo ônibus, o assassinato da velhinha estava na cabeça da seção Polícia Em Poucas Linhas e o desastre de caminhão tinha caído por falta de espaço na página.

                               

                               A manchete da página policial era a prisão no Rio de um dos maiores falsificadores de dólares, com um passado de serviços prestados ao Reich. Tinha lido, cético, rapidamente, a matéria feita por dois jovens repórteres, olhados meio que de lado pelo pessoal da antiga.

                                  Agora, vendo o passeio das mulheres, subindo e descendo a Mem de Sá – alguns travestis também começavam a fazer ponto por ali e volta e meia apanhavam dos cafetões – bebia a terceira branquinha e pensava na mulher e no filho, agora dormindo no apartamento do subúrbio distante, onde a TV, ligada, esquecida na sala, tinha acabado de sair do ar.

 

                                  Caminha pelo corredor, iluminado pela lâmpada acesa na área de serviço do apartamento em frente. Mesmo número só que no Bloco A (roupa na corda, o perfil da mulher triste, mexendo em alguma coisa que não pode ver). No quarto, o garoto suado, só de calção, a sandália pendurada no pé que pende da cama. Põe a sandália no chão e ajeita o corpo do menino. Raylson suspira fundo, chega a abrir os olhos. Mas não se importa, porque não está ali.

 

                                   Vai até o quarto onde Teresa dorme, usando apenas a calcinha. Encolhida, porque a janela aberta e o ventilador ligado baixaram um pouco a temperatura. Coloca o paletó no chão, acaricia o pé delicado dela e deita na cama. Abraça, por trás o corpo macio, sente a respiração suave, as batidas do coração. O ventilador em cima da cômoda faz com que os cabelos dela acariciem o rosto dos dois, mas, de repente, ela puxa o lençol para o lado, levanta rápido da cama.

                                     - Eu tenho que ir - sussurra.                                                                                                                                                                                   

 

                                     A lâmpada fraca pende de um fio que desce do teto. Acesa. Recostado na cabeceira da cama, bebe a cerveja no gargalo.

                          - Mais cinqüenta pra você ficar até amanhã.

 

                          Ela se vira, sorri; Ele bebe outro gole.

                          - Não posso, não posso mesmo.

                                   - Por quê? Tem outro freguês te esperando?                                                                          

 

                                       Janice faz a pia do quarto de sela e começa a se lavar. Gesto sensual, lento, denso, letal. Mas ele sabe que não adianta insistir.

                                        - Eu tenho que pegar o trem daqui a pouco na Central; sou eu quem leva o menino para a creche às sete.                                                                                                                                           

                                         Desmonta da pia. Depois, vestida, apanha as notas amassadas na mesinha de cabeceira, joga um beijo na direção dele e sai, suave e rápida, fechando a porta do quarto.

 

                                          Fecha os olhos por alguns minutos; depois começa a se vestir. Apanha o paletó no chão, imagina,  de novo, o dormir tranqüilo de Tereza no apartamento suburbano e sai do quarto de hotel direto para a solidão da Rua do Riachuelo.                                                                                                                                  

 

                                         O movimento diminuiu quando ele chega na Mem de Sá, achando que passou da conta na bebida: os freqüentadores do bar estão cinzentos, rostos meio que fora de foco. Suado, esgarça o colarinho. As vozes estão distantes e embaralhadas. Na rua, o travesti alto, mulata de peruca loura.                                                                                                                                     

 

                                          Dois repórteres, da antiga, que tinham estado bebendo chope no balcão, pagam a conta, acenam de longe, e vão embora. No bar fica apenas um negro, jovem, pobre, perdido na noite, sentado na cadeira junto da porta, olhos vermelhos, focados na Mem de Sá. “Esse cara aí tem problemas”, imagina, quase divertido.                                                           

 

                                          Afrouxa ainda mais o nó da gravata. Leva até Gomes, o português por trás da registradora, a nota de dez. “Está tudo bem?” “Está tudo bem.” Recolhe o troco, desce o degrau devagar, evitando mancada e começa a andar pela Mem de Sá.

Põe a mão nos bolsos e pensa que o calor talvez tenha diminuído um pouco.

 

Conversa à noite no Maiorca

O bar parece infinitamente extenso; ladrilhos brancos entrecortados por triângulos azuis, que vão até um teto de madeira pintada, branco fosco, e infinitamente alto em relação ao piso de ladrilhos também decorados, gastos.

Pendendo desse teto, fios e bocais, seis ou sete, com lâmpadas incandescentes. Na porta de entrada, uma placa de madeira indica que ali é o Bar Maiorca.

 É a primeira vez de Jack entra naquele misto de restaurante e botequim, conhecido apenas de relance, em passagens rápidas na calçada, trecho final da Praça Getulio Vargas, Nova Friburgo, perto do terminal dos ônibus que levam às cidades próximas.

Jack escolhe o terceiro banco redondo junto ao balcão; o bar esta vazio aquela hora da noite, apenas um homem, sentado numa das poucas mesas no fundo, encostadas na parede lateral.

 Não consegue identificar o rosto por trás do balcão, mas o sorriso é amistoso.

- Você por aqui!

- Por aqui...?

- Não se lembra de mim...

- Deveria?

- Bar na Rua de Santana, quase esquina da Presidente Vargas... Você baixava lá com o pessoal da reportagem...

Cabelo penteado, a barriga proeminente, Jack consegue imaginar pernas tomadas pelas varizes, o conforto de sandálias havaianas. O maço de cigarros fica ao alcance da mão.

- Desculpe; só me lembro do bar.

- Não tem importância! Vai de conhaque?

A busca por alguma ajuda no poço fundo da memória é em vão, mas agora tinha certeza de que estava diante de alguém que conhecia. No passado conhaque era sua primeira escolha.

- Não bebo mais conhaque. Tem uns vinte anos que não bebo conhaque; me traz uma vodca!

A dose é generosa. Jack fica quase feliz de repente! Olha o homem do outro lado do balcão. Mais ou menos cinquenta anos, cinquenta e cinco? Mas no rosto, nenhum traço familiar.

- Tinha você, o Monteiro, o Milton, o Hélio, o Paulo, um outro, que eu não me lembro o nome, bem mais velho, um escuro, que era motorista e não bebia...

- O mais velho era o Salles, estava se aposentando, o motorista era o Fernando...- Jack é assolado de repente por uma ternura nostálgica.

- Isso, Salles! Bebia uma e pegava o taxi! Que ano foi isso!

- sei lá, década de 60. O Salles morreu logo depois que saiu do jornal.

- Faz tempo, a gente ainda era moço.

- Mais de vinte anos.

Outra vodca, tão generosa quanto, aterrisa no balcão.

- Você tá trabalhando no O Friburguense, vi o nome numa reportagem! Como é que você veio parar em Friburgo?

- E você, como é que veio parar aqui na Serra? – Jack, prefere dar um tempo, evitando falar nos motivos que o tinham levado a trabalhar em Nova Friburgo, por menos da metade do que recebia no último jornal, no Rio. De onde tinha saído, depois de um acordo para evitar a chamada demissão por justa causa.

A passagem por três redações de jornais, de onde acabava saindo por conta da bebida, era a causa de ter aceito o trabalho na cidade, mas o dono do Maiorca não precisava saber. Pelo menos por enquanto.

O homem, que no passado distante servia conhaque num bar da Rua de Santana esquina com Avenida Presidente Vargas, pouco se importa com o recuo.

Talvez porque esteja ansioso para revelar sua história, a história de como havia chegado a Friburgo desde os encontros de todas as noites, nas mesmas condições, no bar do Centro do Rio.

Era uma história simples, normal, como tantas, nas vidas dos moradores dos subúrbios do Rio. Jack podia imaginar uma infância sem maiores proezas do que crescer soltando pipa na rua, peladas num terreno baldio, ensino fundamental mal concluído numa escola pública porque precisava ajudar o pai.

- Briguei com meu pai quando tinha uns vinte e cinco, vinte e seis anos e saí pra montar meu próprio negócio.

 Inicialmente um restaurante, que não deu certo e acabou virando botequim.  Dois ou três anos depois a compra de um bar, melhorzinho, numa rua no bairro de Ramos, “coisa pequena também”, o casamento com a mulher, de família friburguense, que dava duro na limpeza do bar à noite, quando ele estava morto de cansaço.

Tudo bem, a família morando de aluguel na mesma rua até o dia do assalto. O dinheiro do caixa era pouco e nem foi levado, mas na saída, sem motivo aparente um freguês solitário levou dois tiros, um na cabeça outros no peito!

- O freguês tinha morreu na hora, veio a PM, juntou uma multidão na porta, a mulher teve uma crise de nervos, “que não queria mais ficar ali! que tinham que ir embora e não se conformava! que se ele não quisesse ia sozinha! que como é que a gente pode viver num lugar em que se mata uma pessoa assim, na frente de todo mundo, às seis horas da noite!”

- Não foi um tempo ruim ali em Ramos. Abria o bar bem cedinho pro café do pessoal das fábricas e do comércio e estava até ganhando um dinheirinho.

Mas depois da morte no bar vieram as consequências: várias idas à delegacia, maltratado por escrivães mal educados, querendo saber o que ele não sabia, um policial aparecendo à noite no bar, querendo bebida de graça.

E a mulher insistindo, falando muito, implicando muito, dizendo que ia embora, que ia embora com a criança!

- Vendi o bar, que tinha um cara já de olho, vendi até bem e comprei esse aqui. Por causa da família dela; depois comprei o sobrado. Divido com uma cunhada dela que mora no quarto dos fundos e de vez em quando paga aluguel. Mais uma?

Jack faz um sinal que sim, quer mais uma.

A terceira vodca desce ainda mais suave, enquanto imagina uma história para justificar por que estava ali, trabalhando num pequeno jornal de Nova Friburgo, ganhando menos da metade do salário no Rio, morando num apartamento emprestado pelo dono do jornal, um antigo colega de redação há muito aposentado.

Pergunta se o banheiro é nos fundos.

O local é até limpo para padrões “botequim pé sujo.” Um limão galego cortado, faz às vezes de desodorante, mas não há tábua na privada nem toalha de papel. Apenas um resto de sabão que escorrega da lateral da pia para o chão. Não dá a mínima. Volta para o balcão com as mãos molhadas e um pano encardido sai do ombro do dono da bar para o providencial enxugamento.

- E você Jack como é que veio parar em Friburgo?  

A pergunta, uma insistência já esperada, não chega a incomodar. Até porque o homem por trás do balcão, contrariando dispositivos, regras e coisa e tal, tinha bebido uma cachaça “produzida na região”, e estava mais a vontade.

- Nada de importante, o problema é que eu nunca morri de amores pela chamada linha editorial de nenhum dos jornais onde trabalhei. Todos apoiadores da Ditadura Militar e eu não gostava da maneira como a direção... Bom, isso não tem nada a ver. O caso é que, de repente você escreve alguma coisa que a chefia de reportagem não gosta porque está fora da linha do jornal. Você pensa que está fazendo o seu trabalho, mas a matéria ou o parágrafo dentro da matéria está fora da linha do jornal. Passa o tempo e um dia a você, meio chapado, vai até a sala do editor-chefe e defende o teu ponto de vista, insiste, porque a matéria deu um trabalho enorme e acabou não sendo foi publicada, essas coisas...

- Você largou o emprego só por isso?

- Não larguei. Dias depois quando eu estava colocando o paletó nas costas da cadeira, o chefe da reportagem disse que eu voltasse no dia seguinte e fosse direto para o Departamento de Pessoal, o RH de hoje.

Era só meia verdade. Não tinha sido o texto, ou o parágrafo, mas o cheiro do conhaque.

No episódio da primeira demissão Jack já estava cansado de saber que jornais refletem os interesses de seus anunciantes, e anunciantes são empresários conservadores, muitos deles naquela época, apoiadores da Ditadura Militar.

Gente que ele, Jack, podia detestar desde os tempos de faculdade, mas que faziam parte da vida, do seu dia a dia, do emprego, do motivo para sair de casa pela manhã.

Sabia também que sua posição, às vezes expressa em discussões meio sem sentido na redação, podia até ser tolerada por editores e chefes de reportagem que, em geral gostavam das matérias produzidas por ele. E sabia também que, matérias que não estão de acordo com a linha editorial nunca chegam às páginas. Ou nunca vão ao ar, no caso das TVs.

- Isso foi no tempo da Ditadura e depois?

- A ditadura militar acabou, mas as coisas não mudaram tanto assim. A gente é mais ingênuo do que pensa aos trinta anos. Alguns de nós, repórteres com experiência nos anos de chumbo, esperávamos, ou sonhávamos com uma nova postura do jornalismo diante da nova realidade, pautas, apurando e escrevendo sobre assuntos que a Ditadura não permitia, numa espécie de doa a quem doer, que era impossível claro... Desce mais uma aí parceiro!

- Isso te incomodava?

No fundo o papo era apenas para impressionar o respeitável público, sendo esse respeitável público apenas um dono de bar de quem ele nem o nome sabia. Sempre soube que o chamado jornalismo investigativo só funcionava dentro dos parâmetros da linha do jornal. A descoberta de um grande caso de corrupção passava primeiro pelo crivo da chefia e coisa e tal. Mas estava ali para impressionar o dono do bar, passando o tempo antes do sono.

- Isso te incomodava mesmo?

- Claro, teve o caso de um chefe de polícia, ou secretário de segurança, não me lembro como o cara era chamado na época. O negócio é que o ocupante do cargo era um general e o general, segundo um policial que não gostava dele, tinha aceitado um belo cheque pra deixar o jogo do bicho correr mais ou menos solto em todo o estado do Rio de Janeiro. No embalo a coisa vazou e um deputado estadual se dispôs falar sobre o caso. Contar o que sabia sobre o cheque dos bicheiros...

Um homem de terno, perfumado, entre no bar, pede dois maços, mas o cigarro que ele quer acabou. Faz um gesto de aborrecimento, nem olha para Jack e volta para o carro, parado na porta do Maiorca, onde há um ponto de ônibus e é proibido parar.

- E então?

- Ouvi o deputado, era um cara da oposição, mas muito bem informado sobre as merdas do governo. Mas pra seguir com a matéria, eu tinha que falar diretamente com o general. Então pedi ajuda ao chefe da reportagem, um cara de quem eu até gostava e que conhecia melhor do que eu os atalhos, os telefones de gabinete do homem.

Jack faz um gesto estudado, bebendo um gole profundo da vodca.

- O caso é que, mesmo sem antes falar comigo, ele levou o caso, ao editor-chefe do jornal.

Toca o telefone, o dono do Maiorca atende e parece irritado com o que ouve do outro da linha. Dá um “to ocupado agora” e bate o telefone.

- Porra, minha mulher querendo saber onde estão os papeis do inventário do meu pai. Eu e minha irmã estamos querendo vender o bar dele lá em Vila Valqueire! É uma loja nova, num prédio novo, deve valer alguma coisa. Eu te interrompi...

- Bom, fui chamado à sala do editor-chefe pra explicar que porra de pauta era aquela?! Quem tinha mandado fazer matéria sobre o chefe de polícia e coisa e tal. Minha reação foi uma surpresa até pra mim mesmo. Defendi minha pauta, enfrentei o editor-chefe e acabei irritado, aos berros, a ponto do cara ameaçar chamar os seguranças. Dois minutos depois estava sentado no bar mais próximo enchendo a cara. Resumo da ópera: pedi demissão depois de sumir durante uma semana. 

Jack não conseguia lembrar da reação real ao esporro do chefe da reportagem mais de trinta anos depois. Até porque tinha invertido a ordem: primeiro o bar depois a aporrinhação. Mas lembrava de ter jogado as laudas no chão, ter dado meia volta e saído em dizer nada.

Nessa época já começava a se sentir novamente desconfortável com o trabalho e, aos poucos ia odiando mais e mais a profissão.

Depois da segunda demissão, tinha trabalhado alguns meses como assessor de imprensa em uma autarquia do governo federal. Um emprego quase informal – recebia em dinheiro, na boca do caixa, o Banco do outro lado da rua.

Mas, ali a ociosidade era o caminho mais fácil para o botequim. Passava o dia lendo jornais, algumas revistas, procurando matérias que mencionassem a autarquia. E descendo para beber a cada meia hora.

Um dia, antes de se despedir dos colegas, a caminho de casa, voltando do botequim, acabou caindo na calçada a poucos metros do prédio da autarquia.

Levado para o Hospital Souza Aguiar, no dia seguinte, curado por uma injeção de glicose, teve que ouvir o “sinto muito, não dá mais”, da boca do amigo repórter, responsável por aquele emprego.

Então, depois de três ou quatro meses parado, o dinheiro no banco chegando ao fim, precisou recomeçar, perambulando pelas redações, procurando velhos amigos, tendo que dizer que a bebida era coisa do passado e coisa e tal.

- E em casa? A família?

- Morava sozinho nessa época, já estava há muito tempo separado da mulher, saia com uma garota dez anos mais nova, meio hippie. Que de vez em quando me levava uma nota, mas tudo bem.

A luz do Maiorca dá uma claudicada, ameaça apagar,o  dono do buteco xinga, diz que a concessionária é uma merda, que esses picos de luz queimam a geladeira, mas tudo volta ao normal.

O que é que estava falando, mesmo?

- Da garota que te levava uma nota.

- Sei... Marli, mas o que é que a Marli tem com a história?

- Bom, antes você disse que estava procurando emprego. De novo.

- É isso mesmo, num desses périplos, aceitei a mudança trabalhar na editoria de polícia. Achei bom. Pelo menos ali não havia espaço para conflitos pessoais. Na polícia só tem espaço para coisas como desastre, incêndio, prisão de bandidos mais ou menos conhecidos da mídia, contrabando apreendido num navio com bandeira da Libéria, um ricaço, pego enchendo a mulher de porrada, ou funcionário público de alto escalão, bêbado dando tiros na rua. Desde então nunca mais parei de fazer polícia.

Música sertaneja irrompe no silêncio na Maiorca. O dono bar pega o celular em cima da geladeira; desliga.

- É pra me lembrar que essa é a hora de fechar o bar. Mas esquece, a conversa tá muito boa.

- Uma vez eu fiz um plantão meio estranho, na porta de um motel, para que o fotógrafo flagrasse um empresário conhecido saindo de lá com um rapaz. A matéria não foi publicada, mas a TV do grupo mostrou o fragrante no jornal da noite. Eu nunca entendi.

A vodca, quinta ou sexta fica diante dele no balcão. Jack sabe que o efeito agora é uma quase euforia que se sobrepõe ao cansaço e quer continuar falando.

- De resto o trabalho diário da reportagem policial é voltado para o que acontece em favelas, ou subúrbios mais pobres, onde gente inocente morre em trocas de tiros, onde a PM invade barracos para prender pequenos, traficantes, aviões do tráfico, frequentadores de bocas de fumo e vai por aí. As brigas entre desafetos pobres, nas portas dos botequins, um “pé inchado” esfaqueando outro, nunca vão para as páginas de jornais impressos ou televisivos.

Uma jovem mulher entra no bar, trazendo pela mão uma menina. A mãe, ou pelo menos é o que Jack supõe, pede dois cigarros a varejo, cata na bolsa algumas moedinhas, contadas uma a uma pelo dono do bar. Jack faz um sinal de adeus para a criança, ela responde com um sorriso encolhido. A mulher sorri também e ganha a calçada em direção aos pontos de ônibus da Praça Getúlio Vargas. 

- Um vez, faz tempo, agora já não sei se foi no primeiro ou no segundo jornal, eu quase fui mandado embora, por uma matéria que, essa sim, chegou às bancas. Era uma visita pastoral do cardeal arcebispo do Rio de Janeiro. O texto saiu sem que nem o copy desk, o cara que dá um trato na matéria, antes dela ir pra página, corta,aumenta com dados da pesquisa e coisa e tal, e nem o editor, que em geral também dá uma olhada percebessem. No dia seguinte o dono do jornal leu na página cinco que seu amigo, o cardeal arcebispo, tinha desprezado os moradores da favela da Mangueira e ido embora, sem saltar do carro, incomodado com o cheiro de uma vala negra... Deu merda o porra do cardeal telefonou puto dentro das calças, no caso dentro da batina!

A luz do bar parece de novo tremer um pouco. Problemas com a concessionária de energia ou a vodca fazendo efeito?

- Se ninguém viu, quero dizer, os caras que estavam acima, não viram, Qual era a tua culpa?

- Foi por isso que a coisa ficou só numa advertência. O editor, era um cara bem jovem que gostava do que eu escrevia, confiava em mim, e por isso não leu o texto maldito. Era um garoto de família rica, formado na Pontifícia Universidade Católica, também não foi demitido, mas acabou mandado fazer o mesmo o mesmo serviço numa revista de modas do grupo...

O homem usando um paletó azul escuro encardido, a havaiana no pé esquerdo, levando alguma coisa embrulhada num pano chega no balcão. O dono do bar serve uma cachaça o homem bebe de uma vez começa a catar moedas no bolso da calça. Paga e sai

 - Porque a história do cardeal provocou quase encrenca a tua vida? Não era verdade o que você escreveu? Vai mais uma? Você ainda é aquele cara que nada te derruba?

 - A verdade não importa muito nessas horas jornalismo. O que importa é a política do jornal, ou a maneira como a notícia sai. Ou não sai. Às vezes a política do jornal, o interesse dos donos do jornal determinam o que, vai ou não para as páginas. E olha só: não sou mais aquele cara que nenhuma bebida derruba, mas estou morando aqui perto; não preciso de um táxi pra voltar pra casa.

O mendigo retorna pede outra cachaça, mas o dono do bar diz que ele tem que primeiro mostrar o dinheiro. O homem mexe nos bolso, mas o que sai é uma moeda que não dá pra pagar a bebida.

- Bota a cachaça dele na minha conta e desce a penúltima, por favor.

A história real, que Jack ia deixando de lado ali, naquele bar vazio de Nova Friburgo é que há muito tempo, não suportava o dia a dia do jornalismo, a tensão, o interlocutor que promete contar tudo, mas que desaparece a mando do advogado, a matéria que cai porque outra de maior interesse entrou na página, a pauta que não foi cumprida porque o carro de reportagem estava com outro repórter que se atrasou e ele não conseguiu um táxi, às seis horas da tarde no centro, para checar porque o gás da distribuídos não estava chegando aos clientes de Laranjeiras.

Não tinha mais a menor vontade a menor paciência, mas não saberia fazer outra coisa. Já não ligava mais, para o conservadorismo da linha dos jornais e nem para editoriais conservadores, que acabava lendo, pela manhã, para ver se suas matérias haviam sido publicadas.

Em um momento de quase desespero, o dinheiro da indenização acabando, o crédito cortado na maior parte dos bares próximos de casa, tinha encontrado um ex-colega de redação. Talvez a aparência, seu estado geral, quando se olhava no espelho pela manhã era péssimo, tenha despertado a velha solidariedade do ex-repórter, agora proprietário de o Friburguense, que tinha feito o convite para trabalhar naquela cidade.

- O salário é metade do que você recebia, mas a vida no interior é mais barata, você vai ver. E pode deixar teu carro no estacionamento de meu prédio, eu tenho direito a duas vagas.

A voz ainda soava no ouvido enquanto subia a serra, o tanque ameaçando secar no meio do caminho.

E agora, entrando pela primeira vez no bar Maiorca, bebendo com uma parte do passado, não tinha ilusões sobre como aquele capítulo da vida ia terminar.

Provavelmente como os anteriores.

O homem sentado no fundo faz sinal, e a conversa é interrompida. O homem resmunga alguma coisa. O dono do bar volta.

- É um cara legal, mas fica bêbado toda noite e, se tomar mais uma não vai conseguir pegar o ônibus... Você não se lembra, mas o meu nome é Silas.

 Bêbados e garçons, donos de bares & assemelhados costumam se entender sem necessidade de palavras e até nomes que interrompam narrativas: um copo lavado, com mais uma dose de vodca é colocado diante de Jack.

- Você cobriu aquele caso da morte da Luz de Fuego?

 - Faz muito tempo, né? Eu participei, a história rendeu várias matérias, Ela foi morta numa ilha no meio da Baia de Guanabara, o assassino...