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sábado, 20 de setembro de 2025

Quinta Lebrão

 


 

                                          A neblina forte que baixou no início da madrugada faz da lâmpada incandescente, no poste, um borrão amarelado fosco. Atrás do balcão do bar, Creso vê a rua, estreita, asfalto fino, esburacado, invadida pela massa esbranquiçada. E ouve um cachorro, longe, que uiva sem parar, som que se mistura à música evangélica tocando rouca em um rádio próximo dali.

 

                                           Creso se impacienta. Já colocou as cadeiras em cima de três das quatro mesas, e baixou a porta até a metade. Antes, escorraçou Raminho, o bêbado perneta que vive com a mãe perto dali e queria tomar a penúltima. Guardou também o avental e molhou e penteou os cabelos para sinalizar a seu último freguês que está na hora de fechar. Nada, o homem bem vestido, um pouco pálido, olhos presos na parede de ladrilho azul, nem se toca.

 

                                          Nem se toca. Sentou, pediu uma cerveja em lata, falou que estava esperando um amigo. Tinha chegado por volta de onze horas, quando só estava esperando que Neuci e Jorjão gastassem a última ficha da mesa de sinuca e fossem embora. Esperando alguém? Ali? Creso sabia que seu bar, na entrada da Rua A, da comunidade da Quinta Lebrão, não era exatamente o melhor lugar para um cara bem vestido, encontrar alguém. Mas, enfim, não era problema seu. Tinha falado que o bar só ia ficar mais meia hora aberto, mas, quando seus olhos bateram nos do estranho, teve um ligeiro sobressalto. O homem parecia estar nervoso, ia descendo uma cerveja atrás da outra, não se importando com a marca, só pedindo a mais gelada. Creso não conseguia entender como é que alguém podia ficar bebendo assim sem dar uma mijadinha de vez em quando. E resolveu dar mais um tempo.

 

                                            O relógio marca uma hora da manhã. O estranho vê, sem dar a mínima, a passagem do tempo e pede mais uma. Creso tem vontade de dizer que não, que não vai servir mais nada, porra. Mas volta atrás: o cara que está sentado na única mesa do salão, ele desconfia, tem problemas. E não teria ficado aquele tempo todo ali, se não fosse por um bom motivo. Creso começa a imaginar, pelas roupas que talvez... Talvez, quem sabe, estivesse à procura de uma mulher que, talvez, e só talvez, tivesse fugido com outro, alguém mais jovem, menos pálido... Talvez o cara estivesse desesperado, até aceitasse a mulher de volta, mesmo depois do belo par de chifres que quase podia adivinhar. Um belo par de chifres, a mulher fugindo com outro e o cara vindo atrás, pedindo pelo amor de Deus que ela voltasse, que os chifres doíam, mas queria ela de volta assim mesmo.

 

                                              Mas que porra de mulher? Mulher de um cara tão bem vestido ia se mandar pra favela?  Volta e meia, piranhazinhas, bem transadas apareciam no bar. Entravam, pediam cigarro a varejo, às vezes refrigerante, que a grana era pouca. O estranho teria alguma coisa a ver? Talvez sim, mais talvez não. Será que a namorada do cara era uma das piranhazinhas bem transadas. Dessas que nem parece que moram na favela. Talvez.

 

                                              Creso sente um pouco de pena do estranho e resolve que espera mais dez minutos. Afinal, esperar para fechar a casa é o de menos, quando tudo está tranquilo, em paz.

 

                                              Meses atrás, também na hora de fechar, tinha tido problema sério com um PM novo na cidade: um tresoitão encostado na cabeça e um calote de cinco cervejas e uns dez conhaques, além de dois pratos de linguiça tira gosto. O puto tinha quebrado também as garrafas vazias que estavam na mesa. É por isso mesmo que sempre tem alguém pronto pra matar PM.

                                             A mulher, que acordou assustada, disse que o estrago até tinha saído barato, Creso pensou em ir até o quartel, dar queixa do soldado ao coronel comandante, mas voltou atrás. Maurizete tinha falado, na mesma hora, que o PM nunca mais ia voltar e isso estava acontecendo. Por via das dúvidas, tinha comprado, na mão de outro PM, conhecido, um trinta e dois com caixa de munição. 

 

                                             Creso molha e penteia de novo o cabelo, vê uma cara cansada no espelho e continua com pena de pedir mais uma vez ao homem pálido que vá embora.

 

                                             Nessas horas dá vontade de fechar o bar, mudar de cidade, voltar a dirigir o táxi. Mas o carro e o ponto foram trocados pelo bar e a casa nos fundos, depois de um assalto em que, por pouco, muito pouco mesmo, não levava dois tiros numa rua deserta a dois quilômetros dali do bar. Uma das balas, disparada quase a queima roupa, tinha aranhado o alto da cabeça. Creso botou o terno e foi à delegacia. Mas, dois meses depois, só tinha conseguido ouvir que “a polícia estava investigando, a polícia estava investigando, já tinham o nome do assaltante e coisa e tal”. Mais nada. Até o dia em que foi recebido aos berros por um delegado de plantão que riu na cara dele e disse “que não tinha tempo a perder com um assalto de merda”. Isso depois de ter passado, várias vezes, dias inteiros de trabalho, na porta da delegacia, Maurizete direto atrás do balcão, cansada, puta da vida. Então, entendeu que estava dando murro em ponta de faca, como falava o pai, e deixou de gastar tempo com aquilo.

 

                                                Além do dia inteiro atrás do balcão do bar, tinha aquela de ser obrigado a conviver diariamente com gente como Olavo, o motorista de caminhão que há um ano tinha matado a mulher e enterrado o corpo no quintal. Tudo na frente do filho de sete anos. Na ocasião, a polícia veio, desenterrou o corpo, levou Olavo, mas em duas semanas o filho da puta estava de novo em casa: sem antecedentes, dirigia seu próprio caminhão, tinha endereço conhecido e coisa e tal... O julgamento não tinha data pra acontecer e a prisão foi relaxada pelo juiz da comarca. Olavo, toda noite, depois de parar o caminhão na porta, vinha até o bar encher a cara.

     

                                                O homem pálido bebe de vez a cerveja. Levanta quase derrubando a mesa, mete a mão no bolso, tira a nota de cinquenta reais. Creso ouve própria voz, cansada, fraca, quase impossível de ser ouvida.

-      São cinquenta e sete reais, com o tira gosto.

-      Tudo certo.

    

                                                 O homem põe uma nota de vinte sobre a mesa.

 

                                                 Creso recebe, vai dar o troco, mas o homem pálido já se virou para sair. Sai detrás do balcão e levanta a porta de aço, até onde seus braços alcançam. Mesmo assim o homem abaixa a cabeça. Creso sente o perfume, bom, perfume de gente com dinheiro, que acompanha o estranho de camisa social azul, cara, calça também cara, a jaqueta de couro preto, sapatos novos esbranquiçados pela poeira da rua. 

 

                                                 O homem sai sem olhar para ele. Vai baixar a porta, mas para. Está tão cansado que precisa respirar o ar frio da noite. Olha para fora e vê o cara bem vestido desaparecendo na neblina da madrugada.

 

                                                 Os olhos de Creso não alcançam a escuridão do beco, do outro lado da rua, a vinte metros dali, onde a sombra joga o cigarro no chão, pisa em cima, e tira a pistola da mochila de plástico preto. Até que fim a hora tinha chegado para a sombra. Que respira fundo, quando o homem é enquadrado pela luz fria que sai do bar.

 

                                                 As mãos nos bolsos, o estranho anda rápido, olhando para o chão, talvez com vontade de chegar logo na área iluminada pelo borrão de luz de desce do próximo poste. Frustrado pelo encontro que não aconteceu?

 

                                                 A sombra ergue a pistola, aponta para a cabeça da silhueta recortada na neblina e dá dois passos a frente, em silêncio.  

 

                                                 O homem de jaqueta leva alguns segundos para perceber. Quando para, de repente, já não há mais tempo. Seu instinto é proteger o rosto. Vai gritar, mas a voz fica no meio caminho. Sente que arregala os olhos e a última coisa que consegue ver é a chama vermelha, ferro em brasa, que se apaga rápido.  

   

                                               

 

                                                 Tudo o que Creso ouve é o estalo de um tiro, bem pertinho dali. Depois outro. Depois, o gemido, baixo, rouco, final.

 

                                                 Susto. Vai baixar a porta do bar, quando a luz se acende na casa em frente. O velho Alcindo aparece na janela e, um segundo depois abre a porta. A música evangélica chega mais alta.

                                                 - Que foi isso, Seu Creso?

                                                 - Sei não, parece tiro...

 

                                                 Alcindo já está passando pela porta feita de tábuas, um dia usadas na construção de um prédio no bairro Santa Cecília e começa a caminhar na direção do gemido. Creso vai atrás, empurrado pela certeza de que sabe quem levou o tiro.

                                              - Ta ali!

 

                                              Um braço está passado por trás da nuca e o outro numa posição estranha, torta, os dedos parecendo querer arranhar o piso da rua de saibro.   

                                              Melhor não chegar perto, Seu Creso.

 

                                              O velho alfaiate acende o isqueiro.

                                              - Não conheço! – diz, aliviado.

 

                                              Fala, mas recua um pouco, porque o sangue ainda escorre, vivo, do buraco no meio da testa do morto, os olhos muito abertos.

 

                                                  - Virgem Maria. Vai chamar alguém, Creso!

 

                                                  O dono do bar tenta respirar fundo. Não consegue disfarçar um arrepio gelado e ouve sua voz explicando:

                                                  - Ele acabou de sair lá do bar! 

                                                  - Vai chamar alguém Seu Creso!

                                                   - Quê isso Seu Alcindo! Quem matou ainda pode estar por aí... Vamos dar um tempo, o cara já ta morto mesmo!

 

                                                  Alcindo continua com o isqueiro aceso. Da neblina começam a emergir outros moradores da comunidade. Uma mulher dá um grito e vira o rosto quando vê os olhos arregalados do morto. Alguém comenta que aquilo só pode ter sido algum acerto de contas.

   

 

 

 

 

 

Balsa na Neblina

 


                                    Percebe, meio sonolento, que a balsa está sendo engolida pela neblina. Recosta-se no banco de trás do carro, sabendo que não vai conseguir dormir. Queria chegar logo, mas esse querer espantava o sono. A balsa que tinha tirado da ilha a equipe do jornal – ele, Paulo Sérgio, fotógrafo e Adoniran, motorista – navegava, cada vez mais lenta, em direção ao continente.

                               

                                   O comandante, ou lá o que fosse, parecia amedrontado pela neblina. A noite tinha chegado mais cedo e o apito, que cortava a escuridão e o silêncio, parecia um grito de desespero. O fotógrafo tinha saído do carro.

 

                                     - Tá encagaçado, foi ajudar o motorista da balsa – brinca Adoniran Três Peixes. O “Três Peixes”, inventado numa pescaria compartilhada com outros fotógrafos, motoristas e contínuos do jornal, num rio da Baixada. O motorista tinha sido o único a conseguir matar três peixes. No caso, segundo os companheiros de pescaria, “três cascudos bem safados, de menos de 10 centímetros”. Adoniran não estava nem aí, mas até a chefia de reportagem tinha adotado o apelido. Três Peixes também disfarça seu medo fingindo que dorme, sabendo que a travessia ainda vai durar algum tempo. 

                                       A ida até aquela ilha meio remota tinha sido em vão. A tal “loura assassinada numa praia deserta”, não tinha o menor interesse para os leitores de um jornal produzido para a classe média. O que na pauta parecia render, não passava de uma história mal apurada. “Ninguém se interessa por crime de pé-de-chinelo”, tinha ouvido nos primeiros dias de trabalho. Talvez rendesse uma notinha de dez linhas; por isso tinha anotado nomes, hora, motivação...

                                       A loura que um pauteiro - mais acostumado com as matérias de “cidade”: parques e jardins, feira de livros, mudanças no trânsito do centro, melhorias no Aterro do Flamengo - tinha sacado na ilha não passava de uma pobre menina, de dentes estragados. E os cabelos eram oxigenados. Matéria envolvendo gente pobre, muito pobre no caso, gente que não faz o gênero dos leitores do jornal; meia lauda no máximo. O noivo, assassino confesso, viajava agora na caçapa do camburão, ao lado do carro de reportagem, balançando na balsa - um pescador ciumento que não gostava das viagens da menina oxigenada ao continente. E que tinha enlouquecido depois da tentativa dela de desfazer o noivado.

                                           Os dois pobres diabos, Cineli Nicanor (branca, 19 anos, do lar) e José do Carmo (branco, 22 anos, pescador) de vida dura, tinham nascido na ilha.                                        E eram parentes distantes. “Se é que existiam parentes distantes”, pensa, lembrando, com uma ponta de remorso, da morte recente de um primo, para quem era “o jornalista”.

                                              Parentesco exibido com orgulho nas reuniões entre engenheiros que trabalhavam no município do Rio. Tinha ficado menos de dez minutos numa festa preparada, dias antes, que um infarto fulminante o matasse na escada do prédio onde morava. Só mais tarde, tinha descoberto que a festa, da qual saíra pretextando “estar cheio de trabalho aquela noite”, tinha sido preparada para ele.

 

                                       Na balsa segue também o rabecão com o corpo da moça para ser autopsiado no IML. Imaginou o pouco caso do legista na autópsia de corpos como aquele. E também o impacto sobre a família de um cadáver cheio de cortes e remendos mal feitos na mesa do necrotério. “Matéria de merda” tinha ouvido Paulo Sérgio praguejar baixo enquanto limpava com um pano molhado, emprestado pela família, o rosto da moça para a “foto de arquivo”, depois do “local” ter sido desarrumado pelo perito.

 

                                     - “Com certeza”, concordou baixinho, as palavras apagadas pelo bater suave das ondas no casco da balsa.

 

                                    A balsa fica algum tempo quase parada no meio da nuvem, o motor desligado. Vozes nervosas, amedrontadas, chegam até o carro de reportagem. “Não adianta nada essa porra de apito”. O motorista, (acordado?) mais assustado agora, segura o volante.  Não responde. Não adianta ficar pensando na possibilidade de um acidente aquela altura do campeonato.

                                     - Essa bosta vai demorar umas quatro horas pra chegar no continente - Três Peixes finge que está irritado.

                                      - E daí?

                                      - Daí que vai ser difícil encontrar um lugar aberto pra gente jantar, porra!

                                    

                                       Então, quase que uma surpresa, a luzes do cais aparecem, bem mais próximas do que poderia imaginar minutos atrás. Adoniran Três Peixes abre o sorriso de alívio. A neblina desapareceu e sem sair do carro os dois viram Paulo Sérgio conversando com a mulher bonita que tinham encontrado na ilha.

                                      - Tá se dando bem, o puto - aponta Três Peixes. - Será que tem a porra de um banheiro por aí?  

 

 

 

Braga

 


                                    A duração, pouco mais do que o tempo de um flash. No primeiro momento, o encontro dos olhos: os seus com os do homem sem camisa, emoldurado de repente pela porta aberta. Olhos muito arregalados por trás dos óculos de aros grossos. Sangue abundante no peito e no canto da boca. Braços imobilizados por alguém que o mantinha de joelhos. Reconheceu na hora. Num segundo instante, em outra porta, outros olhos viram o que ele tinha visto. Olhos que se desviaram rápido.

 

                                    Respirou fundo e quando percebeu já estava no pátio da delegacia, uma velha casa de subúrbio adaptada. Nos fundos, a construção nova com quatro celas. De onde estava podia ver dois presos de bermuda sentados em colchões, ouvindo rádio, volume alto.

                                   Na velha casa, a porta de entrada, estreita, três degraus separavam a ante-sala da calçada. O escrivão, por trás da velhíssima Remington, datilografava  um pedido de material, alheio a duas mulheres que pretendiam dar queixa do irmão bêbado.

                                  Os quartos tinham sido transformados em sala do delegado, setor de vigilância, de averiguações, um espaço para o lazer – mesa de sinuca, mesa de totó – que ninguém é de ferro. Ao lado da cozinha, discreto, sem janelas, o lugar onde o repórter Hercílio Lopes, naquele momento, estava sendo torturado.

                  

                                   Entre a casa e a nova construção nos fundos, o piso era de cimento, rachado em muitos pontos, com buracos em outros. Bem no meio do pátio a enorme mangueira, cujos frutos estavam sendo apedrejados naquele instante por um inspetor e um alcagüete - que com o tempo estava se tornando policial, saindo para fazer prisões no velho camburão da DP da Penha Circular.

                                  As mangas custavam a cair e as pedras estavam batendo no telhado da casa vizinha. O delegado, braços abertos, apareceu de repente na porta dos fundos da velha casa, impediu a tentativa da derrubada das mangas verdes e chamou  por ele.

                                       - Não é preciso dizer que você conhece o cara! 

                                       Respondeu que sim com um gesto de cabeça.

                                       - Então? O que acontece agora?

                                       - Não sei; tô pouco ligando - respondeu.

                                       A resposta, um lapso de uma coragem que desconhecia.

                                       - Vamos pra minha sala.                  

                                       Seguiu o delegado. Antes que a porta fosse fechada, sentou na cadeira em frente à mesa. Braga era um velho conhecido, ansioso para aparecer nos jornais, que telefonava para a redação sempre que, segundo sua avaliação, havia alguma coisa que pudesse virar matéria nas páginas policiais.

                                          Em noventa por cento dos casos o telefone era passado para o repórter de plantão que anotava os dados e a notinha saía, em uma coluna, substituindo um atropelamento na Presidente Vargas ou um homicídio na subida do Borel. Às vezes, mais para não perder o informante qualificado, uma equipe ia até a Penha Circular, onde o delegado se mantinha fazia tempo. 

                  

                                        - Olha, a gente aqui não tem nada com isso. Parece que o cara morava aqui perto, ou o aparelho dele era por aqui, não sei muito bem... Esse pessoal diz que é do Dops, chegou com ele num chapa fria e pediu pra usar a sala...

                                        - Sei.

                    

                                        Braga baixou os olhos, tentou abrir a gaveta emperrada, desistiu, com um “porra, tem que chamar um carpinteiro” e tornou a olhar para ele.   

                                        - Como é que vai ser?

                                        - Você não devia ter deixado essa gente entrar aqui.

                                        - Porra, você deve tá ficando maluco! Fazer o quê, porra! Depois, eles disseram que vão enfiar um porte de arma e deixar o puto aqui mesmo. Solto. A gente esquece o que aconteceu e tudo certo.

                                        - Desculpe, Braga, mas eu não posso aceitar que você está acreditando nisso. Os caras...                     

                                        - E eles também sabem que você é repórter. Foi o Leo, o X-9 que contou... pra puxar o saco dos caras! Ele falou, “olha que tem jornalista aí...”

                                        - Me dá um tempo, um minuto.

                                        Saiu pela porta lateral contornou a casa, em direção ao portão. Passou meio abaixado ao lado do camburão estacionado ali há meses, o motor batido depois de uma tentativa de alcançar um Simca Chambord, com dois traficantes, na Avenida Brasil. Tinha feito a matéria, o Simca bateu de frente com um ônibus da Companhia de Transportes Coletivos: dois traficantes mortos.

                                         Passou  pelo portão; a rural estava a uns dez passos, duas rodas na calçada. Abriu a porta do carona. O fotógrafo e o motorista saíam do bar no instante em que alguém estava atendendo um chamado na freqüência do jornal. Os dois não tinham pressa.

                                          Esperou, pacientemente, que chegassem. Explicou rapidamente o que estava acontecendo, virou as costas. Segundos depois ouviu o barulho das rodas da Rural passando da calçada para a rua de paralelos, voltou andando rápido pelo mesmo trajeto.

                       

                                       Braga tinha conseguido abrir a gaveta.

                                       - Você fez o certo –  respondeu depois de ouvir que a Rural estava a caminho da redação com um recado dele. Os olhos do delegado agora examinavam um par de lápis, pretos, novos, sem ponta.  Remexeu em alguns papéis, colocados um a um no tampo da mesa, uns óculos de aros finíssimos, uma almofada de carimbo, dois envelopes empoeirados.

                                       - Toma.                         

                                        Teve que levantar da cadeira e percebeu que estava sentindo frio, apesar da temperatura de quase quarenta graus ali na Penha Circular. Os dois envelopes, com seu nome escrito errado.

                                          - Que  é isso?

                                          - Dinheiro, porra!

                                          - ...?

                                          -  Propina, caralho, sabe o que é propina! A rapaziada, seus coleguinhas, porra, tem gente que vem buscar toda semana! É dinheiro do bicho, a gente racha; você tá por fora, acho que ninguém te avisou. Agora põe essa merda no bolso pelo amor de Deus!

                                          Gesto automático, a frase não admitia hesitações.

                                          - Vou falar rápido! Eu disse aos caras que você era da casa, de confiança, entendeu? De rabo preso, entendeu? Se te segurarem vão ver os envelopes! Isso pode livrar a tua cara! Depois, já que você é metido a bom moço, joga essa merda no lixo! Ou dá pra algum mendigo!                             

                                           Ficaram ali, em silêncio, até que Braga começou a falar na prisão do assaltante que provocou a ida até a delegacia naquela noite. “Queria café?” “Claro.”

                                           - Sobre o cara que a gente prendeu, esse que vocês fotografaram... eu esqueci de dizer que ele teve participação naquele  assalto em Campo Grande, mês passado. Ele, o Olívia Palito, um tal de Sérvulo, que tá foragido, o Bira, que morreu mês passado e um tal de Bodão. Esse Bodão tinha treze homicídios! Já pensou? Treze homicídios aos dezenove anos!

                                           - Tá morto. Eu...

                                           - Eu sei que tá morto.

                                           - ... tinha feito matéria com ele no ano passado. O pessoal da DP de Madureira pediu pra eu identificar o corpo. Por causa daquela matéria.

                                           - Foi na Dutra, não é isso?

                                           - O corpo estava dentro de um saco plástico do lado da linha do trem em Madureira, a uns duzentos metros da passarela.

                                           - Sei, mas mataram ele na Dutra.

                                           - Não sei, a gente não deu continuidade.

                                           - Foi, foi na Dutra, ele foi morto por um tal de Ratão, lembra do Ratão?

                                           - Não tenho a menor idéia. O jornal não tem espaço pra bandido pé-de-chinelo.

                                           - Não era pé-de-chinelo não! - O dedo fazendo sinais frenéticos, Braga quase se levantando da cadeira. - Não era pé-de-chinelo não! Mexia com maconha, dava proteção a ponto de bicho, deu um tiro num PM! A gente quase segurou ele...                                

                                            De repente absorto, olhando através dele para o pátio com a mangueira.                                

                                            - O Valter, se lembra dele? Deu mole, ficou com medo, o cara ali no bar, aquele um pouco antes da esquina... No que chegou aqui pra avisar, o cara se mandou. De moto.                                   

                                           Tempo passando, começou  ver que o delegado estava ficando ainda mais nervoso, tentando abrir e fechar a gaveta, torcendo as mãos. Estava nervoso também?   Tinha se acalmado quando um detetive entrou na sala e cochichou alguma coisa. Braga levantou rápido.                                    

                                        Enquanto esperava, ficou imaginando a Rural sendo estacionada no pátio, o fotógrafo subindo pela escada, dois, três degraus de cada vez, abrindo a porta da redação, identificando quem mandava mais naquele momento, contando o que tinha acontecido, o pessoal se levantando, se aproximando, alguém indo direto para o telefone, ligar para o dono do jornal.

                                       “Ainda não”. A imagem da Rural percorrendo a Rua São Luiz Gonzaga, ou fazendo um trajeto alternativo, já a caminho da Avenida Brasil, pareceu mais provável.                                        

                                        Braga voltou depois dele ter examinado os envelopes. Tinha um bom dinheiro ali dentro. Cada um com pelo menos um salário.

                                        - Os caras se mandaram – o rosto parecia acinzentado – mas eu tive que dar o teu nome.

                                         Ficaram ali durante a eternidade de um ou dois minutos, Braga espiando a mangueira, ele olhando o piso da sala, muitos tacos soltos. Naquele momento pensou em tropeções e praga. O próprio Braga devia tropeçar muito por ali.

                                          - Não teve jeito, ia fazer o quê?

                                          - Sei, não teve jeito.

                                          - Mas olha, com o peso do teu jornal...

                                          - Acho que nem você acredita nisso, Braga.

                                          -  Olha aqui, se você está preocupado... eu mando o Jorge te levar no camburão...até a porta do jornal.

                                           - Primeiro, eu acho que os caras não vão estar me cercando, né? Depois, se resolverem me segurar, isso vai acontecer mais tarde; outro dia.

                                             - É o melhor que eu posso fazer.

                                             - Sei, eu tomo um táxi.

                                              Chegada ao jornal, sem sobressaltos; pediu que o motorista passasse antes pela porta, desse uma volta no quarteirão. Nenhum carro estranho, nada de diferente. A Rural já devia estar de novo na rua. Zé Grande correndo atrás de algum acidente, um encontro de cadáver na zona sul, ou simplesmente zanzando pelo Largo do Machado com o carro do jornal, ou passando na porta do puteiro da Rua Alice. Enquanto isso o estagiário – bem avisado para entrar em contato com ele – checava delegacias, PM, bombeiros, talvez meio apavorado com as recomendações do Zé.

                                             Sentiu uma espécie de ternura, imaginado o repórter, mais de um metro e oitenta, talvez sentado agora na lanchonete onde, segundo ele, comia-se a melhor fatia de pizza da cidade.   

                                              Saiu do elevador, atravessou o corredor bem iluminado e silencioso, reparando pela primeira vez que as paredes não terminavam num rodapé, apenas mudavam de cor: o azul bem claro ficando muito escuro a dez centímetros do chão. Abriu a porta de vaivém, entrou na redação.

                                               O estagiário ao telefone, um contínuo lendo uma lauda desamassada. Em pé, aparentemente pronto para sair, terno vestido, o jornal embaixo do braço, o editor da página de polícia. Esperando por ele, é claro.

                                                -  Quem era o jornalista? Você não deu o nome, o fotógrafo não sabia quem era!

                                                - O Lopes, aquele que trabalhou aqui.

                                                  - O Caldas acha melhor você não ir  pra casa. Amanhã ele vai falar com alguém do Dops, pra ver como é que as coisas ficam. Caldas, diretor de redação tinha sido avisado. Ele mesmo reservou um quarto no Hotel Ipanema. Fica por lá e amanhã telefona.

              

                                                    Na manhã do dia seguinte acordou meio porrado, a garrafa de vodca pela metade na mesinha de cabeceira.