Diana Palmer
A casa era úmida. Todo o bairro exalava umidade, cercado por um trecho
sobrevivente da mata atlântica, um vale entre montanhas, onde o gramado só
começava a secar depois de nove, nove e meia e o sol desaparecia por volta das
quatro da tarde. O musgo tinha tomado conta das paredes laterais e um corredor entre
o muro da casa vizinha e o gramado vivia permanentemente molhado. Era por ali
que Diana Palmer passeava, molhando as patas que depois iam sujar a varanda
várias vezes por dia.
Costumava caminhar pela manhã até uma pequena banca onde seus jornais
ficavam reservados. Caminhar pelas alamedas úmidas, um sol hesitante passando
ainda frio por entre as copas de eucaliptos. O bairro, para além dos
eucaliptos, estava no meio da floresta nativa, restos da Mata Atlântica
preservados pela existência de um Parque Nacional que parecia querer engolir as
casas. Caminhar era pouco mais do que a quebra diária de um ócio a que ele se
obrigava, desde que tinha abandonado a vida no Rio, acossado por curtos, mas
irritantes e perigosos, hiatos de perda de memória.
Estava se impondo
a ficar ali, mas agora, depois de cinco semanas, não tinha a menor idéia do
porquê. No primeiro momento, as camas, o cheiro de casa fechada, móveis da sala
cobertos com lençóis pela caseira, e muitos objetos que não via há muitos anos,
era puro fascínio. Um fascínio renovado a cada garrafa de vinho ingerida,
quando o mundo se tornava bom e sentia saudades do pai.
Mas, quando o cinzento da manhã tomava o vidro da parte alta das janelas,
o encanto desaparecia e um pouco de saudade das formas da cidade - o barulho,
os riscos, a noite morna, os inferninhos que freqüentava, as garotas de
programa, os táxis a caminho de hotéis baratos no centro, a busca pelo último
botequim pé sujo ainda aberto – o incomodava. Então, meio desesperado, abria a
porta, recebia na cara o tapa de ar gelado do dia nascendo e ia espiar a moça
de cabelos negros que passeava no jardim. Nunca falava com ela para não
espantar uma espécie de magia. Ela pouco olhava para ele, parecendo não ligar
nem um pouco.
Na primeira vez, chegou a
pensar em perguntar o que ela estava fazendo ali, como tinha conseguido entrar
na casa dele? Mas os olhos claros dela, muito claros, fizeram com que
esperasse. Talvez no dia seguinte, talvez mais tarde, talvez um dia qualquer.
No final do gramado, junto do portão, havia um grupo de eucaliptos cercados de
pés de esponjinha por onde a moça desaparecia. Ficava mais alguns
instantes antes de tomar a primeira taça
de vinho do dia, trocar de roupa e ser recebido, na porta dos fundos, pelos
insistentes carinhos de Diana Palmer.
Não ligou para o sereno que molhava
o banco do jardim, na primeira madrugada em que percebeu que a moça de
cabelos negros chegava, não pela manhã como ele pensava, mas nas primeiras
horas da madrugada. De onde estava, podia ver o vestido negro, rodado, fora de
moda, num movimento lento, sumindo aqui, aparecendo ali, entre as árvores e
plantas – canteiros, pequenos oásis no
gramado que o pai, quando vivo, fazia questão de cuidar ele mesmo. Era uma espécie de dança,
uma coreografia sem repetir os mesmos passos, um dilema que não se esforçava
para decifrar. Apenas via, bebendo lentamente, deixando que ela se aproximasse,
mais e mais, mais e mais, até que seus dedos suaves tocassem seu rosto barbado.
A moça
de cabelos negros, então, desaparecia no meio da inevitável bruma da manhã que
se apossava do bairro todos os dias.
Num
dia de inverno tinha bebido demais e estava perdido no jardim, numa névoa tão
densa que as luzes dos postes, na rua, do outro lado do muro, eram apenas
referências sem uso. Escolheu caminhar tateando o muro, quando a mão suave
entrelaçou-se na sua. Deixar-se guiar, cego, menino, sem pressa, sorriso,
tocado pela fada, até ver as luzes que tinha deixado acesas na varanda. “Como é
que você consegue?” “Consigo?” “Consegue estar aqui a uma hora dessas, passar
pelo portão, andar pelo jardim, enxergar onde eu não enxergo?” “Você não
gostaria de saber.” “Tem certeza?” “Absoluta.” “Então, vamos deixar as coisas
como estão.”
No verão daquele mesmo ano começou a sentir que a doença estava
começando a apertar o cerco. Tinha sido escoltado pelo caseiro, alertado por
outro caseiro, quando passeava, sem camisa, já fora do bairro, muito perto da
estrada.
Outra vez se perdera no centro da cidade sem saber o que dizer ao
motorista de táxi, impaciente em saber para onde ele queria ir. Uma noite
acordou na escuridão sem entender onde estava. Acendeu as luzes do quarto e
continuou perdido. Que paredes brancas eram aquelas? As de um sanatório ou de
algum lugar para onde tinha sido levado sem que soubesse?
Saiu do quarto esperando encontrar um corredor comprido, mulheres e
homens de branco, luzes acesas, mas chegou apenas a uma sala com lareira, sofás
de couro e uma televisão ligada. Só com muito esforço conseguiu voltar no
tempo, lembrando, tijolo por tijolo onde estava – na casa do pai – na cidade
serrana, no meio de uma noite que tinha começado, onde e quando ele não sabia.
Os olhos assustados do caseiro e das pessoas com quem cruzava,
eventualmente, nas manhãs geladas, indicavam que os outros moradores do bairro
sabiam bem mais a seu respeito. Então, talvez fosse melhor voltar.
Decidiu procurar o médico que vinha tratando dele há anos. À noite,
esperou em vão a mulher de cabelos negros, mas teve apenas a companhia de Diana
Palmer, inquieta, como se percebesse que ele ia embora, talvez para não voltar
mais. Viu o cinza tomar conta do céu, esperou, sem esperança, o rosado do novo
dia, partiu.
Quando o táxi deslizou pela alameda estreita, olhou a casa pela última
vez. A casa mágica entre eucaliptos e muros de hera, onde Diana Palmer passeava
de mulher pelos jardins.